O jurista Hugo de Brito Machado, um dos mais importantes tributaristas do país, publicou hoje no Diário do Nordeste artigo sobre o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671). A análise jurídica desenvolvida pelo professor cearense ajuda a entendr melhor o polêmico art. 19 da lei, que trata da responsabilidade dos dirigentes esportivos. Confira o artigo na íntegra:
Responsabilidade no Estatuto do Torcedor
por Hugo de Brito Machado
No artigo “Direitos e princípios” (Diário de 25/05/2003), o professor Edgar Carlos de Amorim qualifica como “inconseqüente anomalia jurídica” a norma de recente lei que trata do Estatuto do Torcedor, segundo a qual “as federações e os diretores de clubes responderão pelos danos porventura causados a torcedores, na ocasião de cada partida, mesmo que não tenham culpa”. Segundo ele não seria possível responsabilidade sem culpa, de sorte que tal norma seria uma aberração que não se vai encontrar nem no mais atrasado país da África.
A questão, porém, não é tão simples assim. Primeiro temos que o enfoque político da questão do seu enfoque jurídico.
Do ponto de vista político pode-se discutir se tal norma é inconveniente, ou não, para o desenvolvimento do nosso futebol, e assim questionar se o legislador deveria ter incluído, ou não aquela norma do Estatuto do Torcedor. Feita, porém, como está a lei, não se pode deixar de obedecê-la a pretexto de sua inconveniência, nem se pode questionar sua validade jurídica.
Do ponto de vista jurídico, temos de distinguir a responsabilidade civil da responsabilidade penal. Esta, sim, não pode existir sem culpa. A responsabilidade civil, entretanto, pode ser objetiva, isto é, ser independente da culpa. Já é assim, aliás, desde 1946 em relação ao Estado e às entidades que prestam serviço público. Se alguém sofre prejuízo decorrente de falha no serviço público, o prestador do serviço é responsável pela indenização correspondente, mesmo que não tenha culpa. Basta que seja demonstrada a relação de causa e efeito entre a falha no serviço e o dano. Essa responsabilidade somente não existirá se tiver havido culpa exclusiva da vítima. Mesmo no caso de culpa concorrente é devida a indenização, embora o valor desta possa ser reduzido na proporção da culpa da vítima no evento danoso.
Responsabilidade objetiva, isto é, independentemente de culpa, também é atribuída pela lei às empresas no caso de acidente do trabalho. É obrigatório, aliás, o seguro para cobrir tal responsabilidade.
A responsabilidade objetiva, aliás, está hoje bastante ampliada, posto que atribuída aos que exercem atividades das quais decorra risco para os direitos dos outros. Nesse sentido há norma expressa em nosso Código Civil. “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua própria natureza, risco para os direitos de outrem”.
Podemos, portanto, afirmar que nosso Direito consagra a responsabilidade objetiva, isto é, o dever de indenizar independentemente de culpa, sempre que o dano seja produzido no desempenho de atividade que naturalmente ponha em risco os direitos das pessoas, e além disto, nos casos que o legislador indicar. A tese de que o futebol é atividade que põe em risco direitos dos torcedores é discutível. Não se pode, entretanto, negar validade a dispositivo da lei que estabeleça especificamente a responsabilidade objetiva dos que a promovem.
A verdadeira questão é a de saber se o ônus com a segurança nos estádios de futebol deve ser dos que lucram com a prática esportiva, ou do Estado, isto é, da coletividade de contribuintes. Se entendermos que esse ônus é do Estado, dele será também o dever de indenizar os danos que porventura decorram de falhas nesse serviço público. Se o ônus é das entidades promotoras dos jogos, a responsabilidade será delas, mesmo sem lei que o diga específica e expressamente, como faz o dispositivo do Estatuto em questão.
Hugo de Brito Machado é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e autor de numerosas obras. Este artigo foi publicado no Diário do Nordeste, de Fortaleza, em 11 de junho de 2003.
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