Factóide de chuteiras
por Belmiro Valverde Jobim Castor, para a Gazeta do Povo
Só pode ser um factóide criado por alguns políticos e empresários para provocar os torcedores do Atlético: construir um novo estádio em Curitiba para sediar a Copa do Mundo de 2014, demolindo o Pinheirão. Aliás, nem é para sediar a Copa e sim para hospedar dois ou três jogos eliminatórios cuja realização aqui ainda é duvidosa. Não é necessário ser atleticano para entender que se trata de um despropósito gigantesco que só pode ser levado à conta de um factóide bem-humorado dos “inimigos”.
Como é que alguém defende que uma cidade faça um novo estádio de futebol apenas pelo prazer de não usar a Arena do Atlético, que já responde (ou responderá em breve com a ampliação já em curso) às condições técnicas da Fifa para jogos daquele tipo? Se os dirigentes alviverdes quiserem se candidatar a hospedar os jogos deveriam era investir no Couto Pereira para também adaptá-lo às exigências técnicas modernas e não advogar a aplicação de dinheiro público para financiar, mesmo que parcialmente, a construção de um elefante branco. É uma picuinha política com os adversários ou uma gozação esportiva com os “inimigos” cara demais. E nem venham com a história de que não haverá dinheiro público envolvido e que uma grande multinacional está disposta a investir milhões e milhões de dólares para construir mais uma arena esportiva em nossa cidade. As multinacionais não ficaram ricas colocando dinheiro nessas aventuras oníricas: sabem muito bem fazer contas e não costumam embarcar em canoas desse tipo.
Se os ilustres advogados do novo estádio necessitarem de inspiração para encontrar destino para os recursos de que os governos dispõem para melhorar a vida da população, basta olhar à sua volta. Comecem pela educação, onde as carências da periferia são notórias. Entrem em um posto de saúde ou em um hospital público e terão outra fonte de inspiração. Por que não fazer uma visita ao nosso majestoso Hospital de Clínicas da UFPR? Ele abriga um patrimônio humano científico e profissional de qualidade insuperável, mas vive de pires da mão, de Herodes para Pilatos, a mendigar recursos para comprar os insumos mais comezinhos, permanentemente ameaçado de interromper o atendimento, deixando 23% dos pacientes pobres do estado sem amparo e várias áreas de excelência médica totalmente órfãs a depender da comunidade de amigos? Andem a pé em alguns dos bairros e “comunidades” de Curitiba e se lembrarão imediatamente que há muito a fazer em segurança. E, de passagem, observem a rarefação das praças realmente equipadas para servir como pontos de encontro e lazer, protegidas e seguras.
Parecia que esse triunfalismo construtivo e esportivo já tinha passado no Brasil depois das sucessões dos “ãos” das décadas de 70 e 80: o Mineirão, o Barradão, o Mangueirão, o Castelão, o Arrudão, a maioria deles construída com dinheiro público. Cidades em que uma parcela considerável da população mora em barracos, bebe água poluída e vê o esgoto correr a céu aberto ostentam estádios enormes, invariavelmente ociosos, como tristes e silenciosos monumentos à insensibilidade dos que os construíram.
Daí sempre vem o exemplo imitativo: ah, mas o governo inglês demoliu Wembley e fez um novo estádio moderníssimo em Londres; ah, mas o governo francês construiu o Stade de France em Paris, aquilo sim é que é estádio! Ah, e a Allianz Arena de Munique? A diferença é que nessas cidades as carências básicas já foram superadas há décadas, séculos até. Nelas, pais não são obrigados a dormir em filas para conseguir uma simples vaga para seus filhos na escola, as pessoas não moram em palafitas e os hospitais públicos não deixam os pacientes amontoados em corredores por falta de leitos e de UTIs.
Se esses argumentos ainda não sensibilizarem os patrocinadores dessa infeliz idéia, eles podem recorrer ao exemplo do próprio esporte. No Maracanã, o maior estádio do mundo, vivemos a maior decepção futebolística de nossa história. E, em compensação, nenhum de nossos craques de nível mundial se projetou porque jogou em estádios mais modernos do que os que não alcançaram a celebridade. Todos começaram jogando na várzea, onde o piso é de terra, e a esmagadora maioria iniciou a carreira esportiva em pequenos e desaparelhados estádios de subúrbio, onde a própria grama é raridade.
Para não falar de futebol, por que não lembrar que uma das figuras dominantes da ginástica olímpica, Daiane dos Santos, foi descoberta por uma treinadora atenta exercitando-se em uma barra enferrujada em uma praça de Porto Alegre. Miudinha, com ar de desamparo e subnutrição ela se ombreou e logo superou estrelas da ginástica treinadas na Europa do Leste, em estádios moderníssimos, contando com tecnologia de ultimíssima geração e aquilo que Nelson Rodrigues chamaria de “saúde de vaca premiada”.
A nossa sorte é que os Ronaldos, Kaká, Daiane dos Santos e os Hipólito – Daniele e Diego – têm de sobra o que é escasso em muitos de nossos políticos e empresários: talento e imaginação.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado em Organizações e Desenvolvimento da FAE Business School.
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