André

André, 46 anos, é jornalista. Não abre mão de ser dono do seu Atlético. Vibrou quando o Fião matou no peito aquela bola que ia entrar e saiu jogando com categoria. Abraçou o Vivinho na goleada contra o Cascavel e, diariamente, reza por Alex Mineiro. Foi colunista da Furacao.com entre 2004 e 2005.

 

 

Uma tarde qualquer

03/05/2005


Peço licença aos meus nobres Marçal, Cleverson e Sérgio para, em pleno início do Campeonato Brasileiro, deixar de lado esse Atlético que está aí para tratar do meu Rubro-Negro. Mais precisamente, o meu Atlético de 13 de outubro de 1993, um dos mais memoráveis da minha história. Dia em que o saudoso Furacão de 1949 voltou à ativa numa mais do que insólita aparição. Quarta-feira à tarde, na Vila Capanema, pelo Campeonato Brasileiro da 2ª divisão. Gilmar, Serginho, Reginaldo, Ademir Fonseca, João Carlos Cavalo, Leomar e Paulo Rink reviveram esplendidamente Laio, Sanguinetti, Viana, Rui, Neno, Jackson e Cireno. Ninguém me contou. Eu vi e relato agora como foi que esse fantástico fenômeno aconteceu.

Na quarta-feira eu tinha aula à tarde e, como de costume, permaneceria pela área para otimizar o tempo até o início do segundo e interminável chá de banco escolar do dia. Não sei se eu já estava de caso pensado, é possível que sim, mas chegada a hora do almoço decidi por, digamos, trocar o período de estudos in campi por um aprendizado mais in loco. Deixaria as aulas de complementação para assistir Atlético e Paraná. Entretanto, minha mala recheada de livros se configurava num tremendo incômodo para o meu deslocamento e permanência em praça esportiva, ainda mais nas condições que iríamos enfrentar, confinados aos fundos do estádio. Sendo assim, mais do que marotamente, desovei o excesso de bagagem na mala do meu irmão, que seguiria para casa. A mala eu teria que carregar comigo, já que não poderia deixá-la num canto qualquer, muito menos despachá-la para o aconchego do lar, o que abriria suspeita sobre a minha armação. Apesar de eu não estar matando nem roubando, meu pai, mesmo sendo atleticano fanático, certamente não aprovaria a minha busca por pão e circo em detrimento do conhecimento. Por fim, e agora vem à tona a prova irrefutável da premeditação, após feita a transação dos livros, saquei minha camisa do Atlético, que jazia infeliz no fundo da mala, para envergá-la com orgulho e seguir rumo ao desconhecido.

O jogo era às quatro horas, e eu desembarquei no reduto inimigo com um bom tempo livre. Calmamente, comprei meu ingresso e adentrei às dependências daquele que, quanta saudade, já sediou confrontos de Copa do Mundo. Para chegar aos aposentos da torcida atleticana, era necessário passar por trás da reta do relógio, local onde se concentrava a jovem e empolgada torcida paranista. Aqueles que passavam por ali só poderiam, logicamente, estar se dirigindo ao canto da torcida do Atlético. Dessa forma, éramos saudados com cusparadas e toda sorte de objetos contundentes. Além, é claro, dos tradicionais cantos de celebração da família alheia. Mas nada que pudesse estragar a festa. Afinal, em se tratando de um jogo quarta-feira à tarde, o público só poderia ser composto por desocupados e/ou fanfarrões. O que, mesmo em meio à rivalidade do clássico, emprestava um ar rocambolesco ao evento, com risadas e comportamento geral que só aqueles que estavam na merda, ou muito próximo à ela, poderiam ofertar. O pandeguismo se adonava da Vila. Era só alegria.

Chegando ao espaço da torcida rubro-negra, ainda diminuta, aprumei o meu por ali e sosseguei bem posicionado no alto das arquibancadas daquele anão de concreto armado. Sem demora, a brodagem se fez presente e iniciamos uma amistosa resenha no aguardo do apito inicial. E agora se faz oportuno revelar um dos agentes principais desse humilde remember: o Astro Rei. Fazia um calor senegalês em Curitiba naquela tarde. Que lua, malandro! E, claro, não dispúnhamos de um milímetro sequer de sombra. A rapaziada foi chegando e os lugares rareando, compactando a massa. O sol incidia fortemente nas camisas Rubro-Negras, que absorviam o calor, devolvido a atmosfera ao cantar e pular da torcida numa energia suficiente para iluminar um bairro inteiro. Mas não era só isso. Naturalmente, o calor se convertia em muito suor, com os mais exaltados produzindo verdadeiras cascatas de água salgada sob as axilas. Mais de uma hora para a partida começar e o nível mínimo de desodorância já tinha caído por terra. A muáfa era rainha.

Para complicar, nenhum bar disponível. Amigo, que tarde! Quando se avistava um picolezeiro na reta, uma multidão cercava o infeliz e, como nas ajudas humanitárias na África, o Robin Hood da hora se dispunha a fazer a distribuição dos dolés para a turba ensandecida. Até que o milagre se fez. Alguém sabido dos atalhos do estádio encontrou uma torneira, que lavou não só a alma da galera, como também todas as partes daqueles que se dispuseram a agachar perigosamente à frente de uma fila de homens hostis para receber a graça concedida pela Sanepar. E que graça! Ao ajoelhar e degustar o líquido precioso do Capanema o torcedor levantava em êxtase, como a avistar o prisma do Pink Floyd refletido nas gotas que subiam aos céus e refletiam os raios solares. A pequena porção de vida ingerida, ainda que suspeita, era suficiente para suportar os 90 minutos. Mais tarde, já processada pelos órgãos competentes, voltaria a ser de responsabilidade da Sanepar, agora em outra instância, ainda mais impura.

Eis que o Atlético pisa o gramado da Vila. Elegantemente vestido em camisas rubro-negras, calções brancos e, num toque setentista, vistosas meias listradas. O Paraná veio junto, todo de branco, trajando aquela célebre camisa com detalhes tricolores nas mangas que pareciam um vitral de igreja. Embora tenha sido um time de poucos recursos técnicos, a equipe do Atlético sobrava no quesito recursos humorísticos. Ficando apenas nos nomes dos componentes da esquadra já se configurava um panorama de rir para não chorar. Compunham o onze da Baixada os seguintes atletas: Jadir, Guni, João Carlos Cavalo e Dedé, depois substituído por Pirata. O técnico era Paulo Emílio, uma espécie de jacaré que virava tronco para as equipes ameaçadas de se afogar no rebaixamento. O Rubro-Negro havia feito uma campanha ridícula no primeiro turno, e jogava todas as fichas no returno. A chegada do novo treinador rendeu duas vitórias consecutivas. Era chegada a hora de buscar a terceira.

Trilado o apito e os artistas, independente do ramo de atuação, passaram a correr atrás da pelota. Quem fica, com todo o respeito, nos fundos da Vila Capanema, não vê a partida em sua real dimensão, em decorrência do péssimo ângulo e da grande distância das arquibancadas para o gramado. Contando ainda com os obstáculos da grade e das placas publicitárias. Portanto, é muito comum ser acometido de visagens psicodélicas durante a disputa, uma jogada que foi, não foi e acabou fondo. Ainda mais quando o time ataca para o gol da entrada. Pois então. Aos três minutos, Dedé efetua a cobrança do tiro esquinado e Ademir Fonseca, como batia, subiu de cabeça para inaugurar o marcador. Gol do Atlético. Mas gol para quem estava vendo o jogo. Nós atleticanos, a léguas do lance, não vimos nada. Fomos na reação dos jogadores, que saíram comemorando esbaforidos, e saudamos efusivamente a vantagem mesmo sem tê-la auferida adequadamente. Diante dos apupos de seu torcedor, o Paraná partiu com tudo, e aos 19 minutos, teve para si a marcação de uma penalidade máxima. Gralak caminhou para a bola e, talvez desconfortável por não se tratar de uma cobrança de lateral, sua especialidade, mandou para fora. Como o tiro foi rasteiro nossa visão foi barrada pelas placas, conseqüentemente, repetiu-se o delay da comemoração. Somente quando nosso arqueiro Gilmar levantou e vibrou cerrando os punhos, tivemos a certeza da manutenção de nossa cidadela intacta.

O desperdício do pênalti abateu o escrete paranista, que passou a ser envolvido pelos Rubro-Negros com espantosa facilidade. Dotados de uma vontade incomum, nossos jogadores batiam bola cheios de malícia. E sem demora, cravados 30 minutos, Dedé mandou Régis buscar a criança novamente no fundo das redes: 2 a 0 para o Atlético. Mais uma vez, seríamos apresentados ao tento em sua plenitude apenas nos noticiários televisivos. O que não nos impediu de promover ruidosa manifestação de alegria, que perdurou até o apito final da primeira etapa, e permaneceu intensa durante o intervalo. Do lado de lá, um silêncio sepulcral e a certeza que não poderiam ter recebido convidados mais barulhentos e desagradáveis.

O segundo tempo prometia, afinal, poderíamos enfim acompanhar de perto as ações ofensivas daquele Atlético deveras envolvente. E de preferência que as jogadas acontecessem pelo alto, pelo menos um metro acima do nível do gramado, para que a bola vencesse a barreira das placas e entrasse em nosso restrito campo de visão. E não é que... Aos quatro minutos, com as equipes ainda se acomodando no campo, Paulo Rink foi à linha de fundo e cruzou pelo alto para Leomar. Nós fomos juntos, vidrados na bola. Ela viajou até o centro da área e encontrou a cabeça do meio-campo que mandou um chulápe certeiro, fazendo 3 a 0 para o Atlético. E o que é melhor, nós vimos a rede balançar, assim como toda a confecção da jogada! Com quatro meses de antecedência foi dado o grito de carnaval em Curitiba. Freneticamente, quando não enganchavam nos alambrados, as bandeiras Rubro-Negras coloriam o azul imaculado do céu de uma tarde calorenta. Num bloco só, todos cantavam e pulavam celebrando só o que o Atlético é capaz.

A partir do terceiro gol, o jogo tornou-se praticamente um coadjuvante da festa da torcida atleticana. O Paraná Clube entregue, suplicando o fim do combate, e o Atlético administrando espertamente o marcador. Nessa toada a partida transcorreu até os 26 minutos, quando o árbitro parou o jogo para que a goleada fosse confirmada pelo Rubro-Negro. Pênalti marcado. João Carlos Cavalo seria o encarregado de fechar o caixão. Correu decidido, bateu firme, fez 4 a 0 e partiu em desabalada carreira para comemorar com a galera. Pendurados nos alambrados, torcedores e atletas se abraçavam em absoluta comunhão de sentidos. Não seria estranho se os jogadores pulassem os alambrados para se juntarem à massa, deixando os minutos finais para uma burocrática disputa após a quarta-feira de cinzas. Lamentavelmente, não foi o que aconteceu. Era preciso jogar os 20 minutos restantes, e volta e meia eles foram regidos aos gritos de olé.

Finalizado o jogo, o surpreendente 4 a 0 no placar, e tudo o que aconteceu naquela tarde qualquer de 1993, deixavam muito claro o porquê da paixão que o Atlético exerce sobre sua torcida. E os efeitos provocados por essa relação explosiva. Um time fraquíssimo se transformou no melhor esquadrão do universo, e uma situação caótica na Vila Capanema terminou num verdadeiro paraíso na Terra.


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