Daniel Machado

Daniel Lopes Machado, 46 anos, é empresário e consultor em sistemas de informação. Considera os versos da sexta estrofe do hino atleticano, escritos por um ex-jogador, imortalizado em uma espontânea demonstração de amor ao clube, a mais bela poesia de todos os tempos: "A tradição, vigor sem jaça... Nos legou o sangue forte... Rubro-negro é quem tem raça... E não teme a própria morte!" Foi colunista da Furacao.com entre 2008 e 2010.

 

 

Torcedores ou consumidores?

04/09/2009


O amigo do primo do meu amigo comprou uma caixa de uêifous, daqueles cobertos com chocolate meio-amargo. Passou na locadora de vídeos e afundou-se no sofá, ao lado da namorada – esta, portanto, a namorada do amigo do primo do meu amigo. Ao pegar o último tablete, deparou-se com a embalagem violada.

Sim, aquele papelote que envolve cada um dos uêifous, inexplicavelmente suado e carcomido por alguém ou por alguma coisa sinistra. Então, com nojo e intrigado, o amigo do primo do meu amigo acendeu as luzes e apertou o pause, justamente na melhor parte da trama, quando o Mathew McConaughey persegue de motocicleta o táxi da Kate Hudson.

E comprovou que uma colônia de micróbios, fungos talvez, de fato havia consumido uma fatia do lanche. 'Eu não te disse que era melhor a gente fazer uma pipoca?' questionou a moça, que logo em seguida emendou, furiosa: 'Estou com muita dor de barriga, preciso ir pra casa urgente, está tudo terminado entre nós!' Cortaram as relações ali mesmo, nem viram o final do filme. E ela, então, tornou-se a ex-namorada do amigo do primo do meu amigo, por causa de uma caixa de uêifous estragada.

Indignado, o amigo do primo do meu amigo foi reividicar o caso junto às autoridades competentes. Queria centenas de produtos do mesmo fabricante, uma indenização por danos morais, e, quem sabe, se possível, uma namorada nova, morena de preferência.

Afinal de contas, ele pagou pela caixa de uêifous! Honrou sua parte do acordo previsto na Lei do Consumidor. A caixa de uêifous, por sua vez, não só deixou de cumprir com sua obrigação, que seria saciar saudavelmente a gula do rapaz, como ainda arruinou sua vida sentimental.

Nove anos depois, esse cara – o amigo do primo do meu amigo – obteve ganho de causa. Acontece que ele é rubro-negro muito doente, e agora nem pensa em reclamar seus direitos de torcedor, diante da majoração nos valores dos planos Sócio-Furacão.

Foram ao Procon

Revoltados com a decisão da diretoria, alguns grupos mais organizados protocolaram denúncia no Procon contra o clube, o que ao meu ver, é tão feio quanto bater na própria mãe.

Afinal, somos torcedores ou consumidores?

Torcedores torcem. Contribuem em troca do prazer da participação. Apoiam incondicionalmente, nas vitórias ou nas derrotas, na Arena ou no Pinheirão, na primeira ou na segunda divisão. Por outro lado, consumidores consomem. Pagam em troca do uso. Celebram um mero contrato comercial, geralmente sem qualquer envolvimento emocional com a coisa consumida.

Aos atleticanos cabe torcer pelo Atlético, e não consumir o Atlético. Parece lógico, mas o tempo todo ouço e leio a imposição de exigências em troca da mensalidade: 'Se estivéssemos disputando títulos, eu me associaria,' ou 'Não serei mais sócio, pois o elenco é uma porcaria,' ou 'Este time não vale cinquentão.'

E eis que o amor e a paixão por um clube – mais que isso, uma filosofia de vida – transformaram-se em um produto que pode ser comprado, medido e reciclado, à espera de uma contrapartida vitoriosa.

Preço e custo

Os dias estão tensos. A história dos uêifous foi só para descontrair, para que você chegue até este ponto do texto um pouco mais relaxado. Não quero que minha caixa postal se transforme em uma coleção de xingamentos. Sou da paz. Respeito a opinião dos outros, mas também tenho a minha. Desta vez, estou com a minoria de 37,5% que é a favor do aumento.

Não é fácil compreender o óbvio, pois estamos blindados por uma paixão. O futebol é indescritível; o Atlético, então, é inexplicável. Entretanto, perante a razão, o futebol é só uma atividade de entretenimento; o Atlético é só um clube de prática desportiva.

Assim, o que vale para o futebol vale para o teatro e vale para o cinema. O que determina o preço do espetáculo é o custo. Pouco interessa a qualidade da exibição. No Cinemark do Barigui, por exemplo, o preço que eu pago para assistir a um filme bom é o mesmo preço que eu pago para assistir a um filme ruim. É a cifra da bilheteria e ponto final, naturalmente proporcional ao custo arcado pela mantenedora das salas, obviamente respeitando a lei da oferta e procura.

Da mesma forma, o ingresso para ir à Baixada é proporcional ao custo da realização dos jogos, entre infra-estrutura, salários de atletas e funcionários. É irrelevante se o time jogou bem ou mal, se ganhou ou perdeu. O custo permanece o mesmo.

E o preço aumenta conforme aumentam os custos, inevitavelmente. Pior do que isso: a inflação do futebol é bem maior que a inflação média do mercado. A tendência é que o futebol fique cada vez mais caro, que seja cada vez mais difícil sustentar o amor que sentimos pelo Furacão.

Quem não pode pagar o valor da mensalidade ou do ingresso avulso, não pode ir ao jogo. Fica em casa. Sinceramente, eu não gostaria que fosse assim. Até sonhei que havia mais de um milhão de poltronas na Arena, com livre acesso ao público. Desfilavam no gramado perfeito os maiores craques do planeta, e o Furacão varria todos os adversários. Mas, infelizmente, esta não é, nem de longe, a nossa dura realidade.

Sabedoria das multidões

De qualquer forma, resigno-me à minha minoria, pois continuo acreditando na sabedoria das multidões.


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