Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Passarinhos

10/03/2009


Meu nome é Rafael Fonseca Lemos, conhecido, também, entre os amigos, como: Rafael Lemos, Rafa, Rafinha, Professor Rafael, Finha, Atleticano e Turco. Entre os inimigos, como: puxa-saco do Requião e do Petraglia (se bem que prefiro o termo admirador). Tenho 33 anos, 27 dos quais como torcedor do Atlético Paranaense. Gosto de contar histórias, inclusive sobre futebol, e gosto de fazer amigos.

Talvez por isso eu tenha virado colunista aqui na Furacao.com, atendendo ao chamado do bom amigo Rogério Andrade, isso no já longínquo abril de 2007. Por aqui escrevi uma centena e meia de colunas e fiz centenas de amigos e escrevo por amor, sem ganhar nada além do carinho dos queridos amigos-leitores (eis minha maior recompensa). “Dinheiro pra mim não tem valor, quando o assunto é amor”, ainda mais quando se trata de amor ao Atlético!

O dinheiro eu ganho na Secretaria Estadual da Saúde, das 8h30 às 18h, de segunda a sexta; ou dando aulas particulares de Português, nos finais de semana; ou advogando de modo bissexto ou ainda elaborando questões para concursos públicos. Foi na Secretaria da Saúde que eu conheci meu amigo coxa-branca, Gibran Mendes, grande contador de causos envolvendo o rude esporte bretão.

Ter amigos coxas-brancas parece ser a minha sina, e, curiosamente, muitos dos meus melhores amigos são torcedores do time verde. No rol dos meus inestimáveis amigos esmeraldinos, além do Gibran, figuram: meu irmão, Flávio Lemos; meu falecido avô, Félix Pedro (falecido coisa nenhuma, pois segue imortal no meu coração e nas minhas memórias); minha santa mãezinha, Dona Cleonice; meu padrinho de batismo, a quem mando daqui meu cordial abraço e minha eterna gratidão, e pelo menos uma dúzia de primos. Gosto de fazer amigos, gosto de contar histórias.

As amizades são sempre verdadeiras; as histórias, não. Às vezes, aparece-nos na cabeça uma boa mentira que precisa ser contada e aí vira história - ou estória, como preferem alguns. Quando a narrativa é de mentira, eu e o Gibran convencionamos dizer que é “passarinho” tudo por conta da crônica do Mário Prata que segue adiante transcrita e que vale a leitura:

“Éramos três do Estadão lá em Paris, sem contar o meu querido Reali Jr: o Chico Buarque, o Mateus Shirts e eu. Os três, cronicando. Para evitar que a gente escrevesse a mesma coisa, driblasse o mesmo tema, trocávamos fax (o compositor é contra e-mail).

No primeiro sábado, antes de sair a primeira dominical do Chico, chega o fax: "Com Os Meus Botões". Um poema, como me diria depois o flamenguista Aluizio Maranhão, nosso redator-chefe. Realmente um poema. Em Paris, entre os colegas jornalistas, não se falava noutra coisa.

Leio orgulhoso. Afinal, fui eu quem convenceu o poeta a escrever crônicas na copa. Tinha certeza que ia dar samba. A crônica falava dos times de botão do Chico e dos que todos nós tínhamos nos anos 50 e 60, pedaços de plásticos concentrados dentro de uma caixa de catupiri, com direito a talco e flanelinha. E todos botões tinham nome, é claro. Mas tinha um pedaço na crônica:

"Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber por que continuei a encará-lo. O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco vermelho. Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava pessoalmente com um botão".

Muito bonito. Só que eu gritei:

- Passarinho! Isso é passarinho do Chico!
- O quê que é passarinho? me perguntou o Mateus abrindo uma garrafa de uísque com os dentes.
- O dedão na clavícula é passarinho!!!

Deixa eu explicar o que é um passarinho. Em 54, o Nelson Rodrigues escreveu uma crônica dizendo que a imprensa estava muito chata por falta de passarinhos. E explicava que antigamente era diferente. Que hoje (54) não se mentia mais. Uma vez houve um incêndio na Lapa, mandaram um repórter para lá e reservaram a primeira página. O repórter voltou desanimado: apagaram o incêndio com um regador de jardim. Mas não aconteceu nada que dê notícias? Bem, disse o repórter, tinha um passarinho dentro de uma gaiola muito nervoso. Foi o bastante: "Fogo Ameaça Fauna na Lapa".

Era isso: o Nelson estava dizendo que os jornalistas brasileiros não mais aumentavam a notícia, não criavam nenhum passarinho. E nas nossas conversas intercronistas a palavra passarinho é muito corriqueira. Eu, por exemplo, me considero um passarinheiro de marca maior.

Então, pra mim, o dedão na clavícula do Formiga era passarinho. Estava na cara que era. Basta conhecer um pouquinho o Chico. Aliás, um bom, um excelente passarinho. Mas, passarinho.

Passo um fax para a casa do Chico. Não deu dois minutos, toca o telefone. Era ele. Indignado. Não fala oi, nem nada. Raivoso, atacando e se defendendo ao mesmo tempo, parecia a seleção da Nigéria em seus desengonçados momentos de glória. Ele estava mesmo bravo comigo:

- O dedão na clavícula é passarinho? O dedão na clavícula do Formiga é passarinho?

Nunca tinha visto o cara assim. Dei até um passo atrás lá no meu quarto. Fiquei sem jeito. Achei que eu tinha pegado pesado com ele. Afinal, a primeira crônica dele e eu dizendo que o dedão na clavícula era passarinho? Mas fiquei na minha:

- Desculpa lá, mas é. Você vai me desculpar muito, tá tudo muito bom, muito bonito mesmo, um poema e não sei mais o que. Até você ficar sem palavras olhando para a cara do Formiga, tudo bem. Colocar a mão no ombro, tudo bem. Mas jogar botão com a clavícula do Formiga, pra mim é passarinho. Um excelente passarinho, diga-se de passagem.

- Você acha mesmo que o dedão na clavícula do Formiga é passarinho?

Eu achava mesmo:

- Acho!

Ele abre uma risada contagiante e mal consegue dizer, triunfal:

- Cara, eu nunca vi o Formiga na minha vida!!!”

A história do Chico era mentira, mas merecia ser contada. E se há tantos passarinhos voando pelos céus dos times de Rio e de São Paulo, não poderia ser diferente aqui no céu de Curitiba. A dupla Atletiba também tem seus passarinhos que precisam voar e por isso emendo aqui a minha história.

Desde 1982, sou botonista e dos bons. Não me lembro de ter encontrado nesta vida adversário que me batesse dentro das quatro linhas do gramado de madeira, mas devo confessar que o meu irmão, Flávio Lemos, embora três anos mais novo do que eu, sempre foi páreo duríssimo. Disse nunca ter encontrado adversário à altura, mas retifico: o Flávio sempre foi melhor do que eu.

Eu fazia de tudo pra ganhar do Flávio, mas ele sempre levava a melhor. Em nossas partidas de futebol de mesa, eu sempre atuava com os botões do Atlético e o Flávio sempre com seus botões do Coritiba. As derrotas se acumulando em minha carreira e eu, inconformado, resolvi radicalizar e isso no futebol significa fazer boas contratações.

O Flávio tinha botões simplezinhos, de acrílico, e eu ouvi que o quente mesmo era fazer botões usando lentes (vidros) de relógios. Resoluto, e sem o Flávio saber da minha trama, fui de manhã cedo até a Relojoaria Progresso, ali na Praça Tiradentes, e comprei dez lentes de relógios.

Depois as lentes foram cuidadosamente pintadas de vermelho e preto (sequei os botões às pressas, com o secador de cabelos da mãe) e mais tarde colei os adesivos com o escudo do Atlético. Estava montada a esquadra capaz de levar a pique o portentoso time verde comandado pelo habilidoso Flávio.

Naquela manhã, comprei na Relojoaria Progresso as dez lentes de relógios e, quando já estava pagando a conta, vi a um canto um relógio-cuco, daqueles bem antigos, cujas horas são marcadas pelo passarinho que sai gritando da casinha. Como me sobrara algum dinheiro, comprei a bonita peça que o velho alemão da loja dizia estar funcionando perfeitamente.

Já em casa, instalei o relógio-cuco na sala, local onde eu e o Flávio costumávamos disputar as partidas de botão e, em sua primeira atuação, o cuco foi infalível ao marcar seis horas da tarde: “Cuco-cuco-cuco-cuco-cuco-cuco!”. O velho vendedor alemão não me enganara: o cuco estava mais vivo do que nunca na sua casinha no topo do relógio.

Quando o cuco saiu de sua morada para marcar sete horas da noite, o jogo já estava rolando há quinze minutos. Partida equilibrada, difícil como era de se esperar. O Flávio abriu o placar, num golaço de falta do Tostão. Cinco minutos depois, empatei com Dirceu, o Carrasco de 1990. Depois, mais um gol pra cada lado e a partida só acabaria quando alguém fizesse o terceiro tento.

O relógio-cuco marcava 3 minutos para as oito da noite. O jogo seguia apertado, chances lá e cá, clássico nervoso, como todo Atletiba. E aí quando faltava, exatamente, um minuto para as oito, o Flávio cometeu falta e eu poderia batê-la direto pro gol. Era a bola do jogo e dali eu não costumava errar!

Arrumei a bola e pra cobrança encarreguei Carlinhos, o Sabiá. O Flávio preparou o arqueiro Gérson. Faltavam 20 segundos para as oito horas da noite quando eu parti pra bola. Na cobrança, um tirambaço certeiro - no ângulo, na gaveta - deu números finais à partida e decretou a minha incontestável vitória.

Eram, precisamente, oito horas da noite quando a bola entrou, estufando o barbante do time verde, inapelavelmente. Naquele instante, o cuco, pontualíssimo, saiu da casinha e gritou:

- Gooooooooooooooooooooooooool do Atléeeeeeeeeeeeeeeeticoooooooooooo! Carlinhos! Carlinhos, o Sabiá!!!!!

E depois retornou para a casinha, onde foi fechado, para sempre, com grossas camadas de durex por um Flávio indignado e que, até hoje, só usa relógio digital!

E como desde aquela noite o cuco jaz em sua casinha-sepultura, ninguém conseguiu saber se ele gritou gol por ser Atleticano fanático ou se gritou, apenas e tão-somente, em franca simpatia ao Carlinhos que, afinal de contas, era Sabiá.

Mentira minha? Que nada! Passarinho, Gibran! Passarinho....

P.S.: Dedico esta coluna a todo torcedor que vê no futebol um grande pretexto pra fazer amigos e pra contar histórias - ou estórias, se preferirem...




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