Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

O Mixto e o misto

06/03/2009


Ocorreu ontem, em Curitiba.

O pai, paranista, chegou eufórico à casa humilde e, da porta, num grito, convocou o filho mais novo, este com nove anos de idade:

- Cleverson Augusto? Ô Cleverson Augusto? Vai botar uma camisa de jogo que hoje nós vamos à Vila Capanema comer Mixto!

Só de ouvir a expressão “Vamos comer Mixto!” a boca do moleque encheu d’água e ele quase não conseguiu responder ao chamado do pai. Disse só um “Oba, papai!” e esguichou saliva pra tudo quanto foi lado.

O moleque disse aí o supracitado “Oba, papai!” e correu para o quarto vestir a camisa de ir ao jogo. Diante dele, havia duas opções: vestir a peita do Paraná Clube ou a do Corinthians Paulista e aí o menino, meio que inspirado no Joel Malucelli, deixou de lado o paranismo para render homenagem ao alvinegro do Parque São Jorge.

Metido, por opção, na camisa corinthiana, Cleverson Augusto correu para a porta e se apresentou ao pai, como se fosse um soldado diante do sargento, ou coisa que o valha (podia ser “como um marido diante da esposa”, mas ele se apresentou como um soldado diante do sargento).

Vestido à Ronaldo Fenômeno, o gurizinho-mosqueteiro sentenciou, decidida e famintamente:

- Papai, vamos à Vila Capanema comer misto!

Da casa até o estádio – o termo “estádio” aqui é só o modo de falar – gastaram 40 minutos. No trajeto, papai falou mais umas três vezes “Hoje nós vamos comer Mixto, Cleverson Augusto!”. O menino, ao ouvir a promessa, babou-se em mais três ocasiões e, esguichando saliva, repetiu, aderindo às palavras do pai “Hoje nós vamos comer misto na Vila! Vamos comer misto”.

Já próximos ao estádio, Cleverson Augusto teve medo:

- Papai, pra entrar tem que passar perto desse rio? Tô com medo, papai!

- Besteira, menino! Pense que vamos comer Mixto!

E o menino, tentando driblar o medo de cair no valetão, apertou forte os olhinhos até surgir em sua mente a imagem do sonhado misto. Salivou de novo e cuspiu, resoluto, um jatão de saliva pra dentro do rio!

Dentro do estádio, pai e filho se juntaram à multidão que, segundo o borderô, chegou a 3.500 torcedores, o que equivale a dizer que metade dos paranistas se fez presente ao tão aguardado confronto de gigantes do futebol nacional. E diante da nossa dupla, transcorreu o espetáculo.

O Paraná, vencedor da primeira partida, podia até perder de 1 a 0 que o sonho de comer o Mixto estava garantido. Ao Mixto restava a missão de ter de fazer 2 a 0 para se classificar ou 2 a 1 para levar a pendenga pros pênaltis. O pai de Cleverson Augusto era todo certeza: “Vamos comer Mixto!” – gritava na arquibancada fazendo tremer as lombrigas na barriga do moleque. E o moleque, quase histérico, aderia aos berros: “Vamos comer misto!”.

Ao contrário do que a massa anfitriã esperava, o jogo estava mais duro do que bife em marmita de pobre e o Mixto, aos 40 da etapa inicial, num contra-ataque, abriu a contagem: “Tiago Tiziu esticou para Alex Sorocaba, que desviou na saída do goleiro Rodolfo”.

- Papai, já está na hora do misto?
- Cala a boca, Cleverson Augusto! O Mixto fez o gol, mas a hora do Mixto não demora a chegar. Espere só!
- Então está bom, papai, vou ficar aqui na miúda esperando a hora do misto!

No segundo tempo, sob protestos da torcida, o Paraná pressionou até que aos seis minutos, Bruninho sofreu pênalti e o zagueiro João Paulo empatou a partida pra explosão do pai do menino:

- Gol do Paraná! A hora do Mixto está chegando!

E o guri, ao saber que a hora estava quase chegando, fez até uma musiquinha:

- Misto, pode esperar, a tua hora vai chegar! – e na mente a imagem daquele misto-quente delicioso, cheio de queijo e presunto, o pão douradinho, crocante...hum!

Alegria do povão paranista! Mas como diz o ditado “Alegria de pobre dura pouco” e aí: “Em mais um vacilo da zaga paranista, Igor fez 2 a 1 para o Mixto, aos 35 minutos!”.

- Papai, já está na hora do misto?

Cleverson Augusto, em face da pergunta, levou um croque e a decisão da vaga acabou indo pros pênaltis. Tensão na Vila e a coisa acabou saindo conforme a narração que segue:

“O Paraná abriu as cobranças e conferiu o primeiro. Em seguida, Davi fez para o Mixto, e Murilo converteu, na sequência, para o Tricolor. Contudo, Moura desperdiçou para a equipe do Mato Grosso. Fabinho marcou e deixou o Paraná em vantagem. Igor fez para o Mixto, mas Wando bateu na trave, deixando tudo igual. Hilton Mineiro, jogador mais experiente do Mixto, chutou para fora. Everton, com uma bela cobrança, fez o gol que garantiu a classificação paranista”.

Diante da soberba classificação, o pai abraçou, apertadamente, Cleverson Augusto e, entre lágrimas, gargalhadas e soluços, gritava sem parar:

- Está vendo, filho? Comemos o Mixto! Comemos o Mixto dentro da Vila Capanema. Comemos o Mixto! Papai prometeu e cumpriu: comemos o Mixto!

Ah, senhores, ao ouvir do pai que a promessa já tinha sido cumprida, o guri caiu numa revolta antes só vista na carne do Pixote ou do Pedro Bala (este, menino de rua corajoso e destemido líder dos “Capitães da Areia”, da Salvador de Jorge Amado) e, com a ginga de um Mano Brown, enquadrou o pai ali mesmo, nas dependências da Vila:

- Como é que é mano? Nós já comemos o misto? Que história é essa de que a gente já comeu o misto se a minha barriga continua roncando mais que as cuícas do Salgueiro? Que porra é essa de já comemos o misto?

O pai, mais assustado do que coxa-branca diante de mulher, resolveu desfazer o equívoco, dando uma de Professor Pasquale pra cima do menor:

- Ai, Cleverson Augusto! Mixto é o nome do time que a gente iria enfrentar. Quando eu disse pra você que a gente ia comer Mixto era no sentido de que iríamos ganhar deles a vaga, entendeu? E esse Mixto, que é o nome do time deles, se escreve com letra maiúscula e com “xis”, porque a palavra está no subjuntivo, sacou?

- Porra, mano! Eu pensei que era misto tipo aquele sanduíche e tal, com presunto, queijo, tomate e pão douradinho!

- Não, filho! Aquele é misto escrito com “esse”, pois se refere ao sanduíche e está, portanto, no pretérito imperfeito, entendeu?

Mesmo sem entender porra nenhuma, Cleverson Augusto não teve argumentos para discutir com o pai. Na volta pra casa, entristecido, o piá não aderiu aos gritos do pai “Comemos o Mixto! Comemos o Mixto!”.

Acabou indo pra cama de barriga vazia, sentindo-se enganado pelo pai e esganado pela fome. Hoje, acordou, definitivamente, corinthiano.

E enquanto mastigava um pão adormecido, fechava forte os olhos pra imaginar na boca o sabor do misto; e pra imaginar o Ronaldo Fenômeno marcando um golaço na Vila, depois de ter driblado metade do time do Paraná.

Enquanto mastigava um pão adormecido, fechava, fortemente, os olhos, só de raiva. Só pra que as lágrimas não rolassem. Só pra não ver o pai. Só pra que o pai não o visse chorando. Só porque homem não chora!

Ocorreu ontem, em Curitiba.

P.S.: Há poucos dias, o Atlético ultrapassou a expressiva marca de 21 mil sócios-furacão, porém o Marcelinho Paraíba - bom jogador e artilheiro nato - está prestes a assinar com os verdes!

Às vezes, o Atlético me faz de "Cleverson Augusto", mas não vou chorar, tampouco vou deixar de acordar, todas as manhãs, com uma das minhas lindas camisas do Atlético!

Durante o café, hei de mastigar o pão. Na cabeça, as perguntas: "O que foi feito do Atlético Total?", "Por que o Marcelinho Paraíba aceitou assinar com os verdes, quando há pouco tempo todos queriam assinar conosco?", "Por que tanto divisionismo, se é a União quem faz a força?", Por quê?


Este artigo reflete as opiniões do autor, e não dos integrantes do site Furacao.com. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.