Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

As cores e as dores de um homem

04/02/2009


Esta Furacao.com noticia hoje que “Uma cena lamentável manchou o brilho da festa das torcidas no clássico Atletiba do último domingo, no Estádio Couto Pereira. Pouco antes do fim do primeiro tempo, a provocação típica de torcedores rivais nas arquibancadas foi substituída por um episódio criminoso e que deve ser repudiado por toda a sociedade. Ao invés de músicas e cantos comuns das torcidas de futebol para provocar os adversários, alguns torcedores do Coritiba xingaram e fizeram gestos racistas contra os atleticanos, numa clara demonstração de segregação racial”.

À notícia, acrescento: Ao invés de músicas e cantos comuns das torcidas de futebol para provocar os adversários, alguns torcedores do Coritiba xingaram e fizeram gestos racistas contra os atleticanos, numa clara demonstração de segregação racial, DE COVARDIA, DE BAIXEZA, DE FALTA DE CARÁTER E DE BURRICE.

Estou indignado, é verdade, mas não pensem que vou escrever inspirado por esses idiotas e em “homenagem” a eles. Tampouco darei a eles alguma lição de moral, pois moral é coisa que eles não têm e nunca terão. Imbecis são dignos das colunas policiais e indignos de ganharem espaços numa coluna ligada ao futebol. Vou escrever, sim, sobre as diferentes cores dos homens, sobre as diferentes dores dos homens, vou escrever sobre a vida.

O ano de 2003 foi difícil para mim. Entre fevereiro e novembro, fiquei desempregado. Em agosto, consegui trabalho voluntário num dos hospitais de Curitiba. Duas horas por semana, sempre nas terças-feiras. Nunca havia sido voluntário até aquele agosto e, de cara, fui escalado para ler histórias e supervisionar o desenho das crianças internadas, mas que já estavam liberadas para as atividades de lazer/terapia.

Tímido, pensei que ia ser muito complicado me soltar com as crianças e quebrar o gelo. Entrando na sala das leituras e dos desenhos, apresentei-me – num improviso – “Eu sou o Rafael, tenho 28 anos e torço pelo Atlético Paranaense!” e depois pedi que a gurizada fizesse o mesmo. Diante dos meus olhos, crianças, visivelmente abatidas, ganharam forças e foram se apresentando.

- Meu nome é Marcelo, tenho 8 anos e torço pelo Atlético!
- Muito prazer, seu Marcelo. Daqui pra frente você vai ser o Marcelinho!

A gurizada explodiu:

- Marcelinho! Marcelinho! Marcelinho!

- Eu sou o Renan, torço pelo Atlético e tenho 5 anos!
- Muito prazer, Dr. Renan!

E a gurizada, rindo, arriscou uma quase-musiquinha: Dr. Renan! Dr. Renan!

- Rebeca, 6 anos, e não gosto de futebol!
- Dona Rebeca, se você não gosta de futebol, gosta de peteca? – provoquei, na forma de quase-poesia, e veio mais um coro da gurizada:

- Rebeca peteca! Rebeca peteca!

Mais duas apresentações e chegou a vez de uma menininha negra, cabecinha raspada por conta da quimioterapia, magrinha, enormes olhos pretos, olhos curiosos.

- E você, menininha, não vai me dizer o seu nome?
- Não!
- Nem a sua idade?
- Também não!
- E o time?
- Menos ainda!

Todas as negativas dela tinham um arzinho de deboche. Ela estava louca pra responder a todas as perguntas, mas estava fazendo charme, eu percebia isso e dava corda só pra ver aonde ela ia chegar.

- Ah, conta pro tio qual é o seu nome?
- Não! – e ela disse esse "não" segurando o riso!

Como o diálogo não progredia, a turminha entregou:

- Ela é a Letícia, tem 9 anos e torce pro Coxa!

Fingindo decepção, ataquei:

- Dona Letícia, você é uma menina tão linda, e torce pelo Coxa? Ah, isso não se faz com o Tio Rafa! Logo pro Coxa! Pro Coxa... – e ela, diante do meu fingido horror, abriu-se num sorriso que iluminou seu rosto abatido e que iluminou a sala inteira.

Ao final das apresentações, houve amor à primeira vista, de parte a parte. Este pobre Rafael virou Rafa, pra criançada do Hospital; e cada criança acabou rebatizada com os apelidos carinhosos de “Marcelinho, Rebeca Peteca, Dr. Renan e Letícia Coxa-Branca” – coisa de amigo pra amigo.

O ano de 2003 foi difícil para o Atlético e risonho para o Coritiba. Toda terça-feira eu ia visitar os meus amiguinhos no Hospital para a “Leitura das Histórias e Supervisão dos Desenhos”. Nas atividades, entre uma história e outra, entre um rabisco e outro, Marcelinho, Dr. Renan e eu falávamos sobre o Atlético – meio que disfarçadamente, pra Letícia Coxa-Branca não nos ouvir.

- Rafa, o Atlético está ruim!
- Está feia a coisa, Marcelinho!
- Tem hospital pra time de futebol, Rafa?
- Tem nada, Dr. Renan!
- Xi, olha a Letícia Coxa-Branca!!! Ela está vindo. Vai tirar sarro de nós! Disfarça!

E não dava outra! A Letícia Coxa-Branca - menininha negra, cabecinha raspada por conta da quimioterapia, magrinha, enormes olhos pretos, olhos curiosos – chegava perto de nós, com ares de riso, e perguntava:

- E o Atlético, Rafa? Está ruim, né?
- Está, mas vai melhorar!
- É, mas o meu Coxa está muito melhor e vai jogar a Libertadores! Pode perguntar pro meu pai! Foi ele que me falou e ele entende tudo de Coxa!

No dia 07/10/2003, primeira terça-feira de outubro, fui ao Hospital para minhas atividades. A turminha reunida se ressentia da ausência da Letícia. Após as histórias e desenhos, procurei o Dr. Giorgio Baldanzi e ele me falou que a Letícia havia sofrido uma recidiva da anemia falciforme e que estava na UTI desde a noite de sábado, 04/10/2003. Era pouco provável que ela sobrevivesse.

No sábado, 11/10/2003, às 9 horas da manhã, recebi por telefone a notícia: a Letícia havia falecido, pouco antes das 4 horas da madrugada. Naquele sábado de outubro – dia de Atletiba, por sinal – fui ao velório da Letícia. Ao me despedir da pequenina amiga, vi o corpinho negro repousando no caixãozinho branco; vi o corpinho negro cercado por três bichinhos de pelúcia, multicoloridos; o corpinho negro coberto por flores brancas e ramos verdes, como se a natureza quisesse prestar sua homenagem à pequena Letícia Coxa-Branca.

Após o sepultamento, seu Paulo – pai da Letícia – aproximou-se de mim e me entregou uma folha cuidadosamente dobrada. Nela estavam desenhados: um homem de óculos - branquelo e gorducho - vestindo a camisa do Atlético e uma menininha negra vestindo a camisa do Coxa. Em volta dos desenhos, um monte de coraçõezinhos e no rodapé uma dedicatória, com letras trêmulas: "Pro meu amigo Rafa uma lembrança da Letícia Coxa-Branca". Lembrança de uma menina Negra, Linda e Coxa-Branca que eu nunca mais vou esquecer.


Este artigo reflete as opiniões do autor, e não dos integrantes do site Furacao.com. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.