Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Olhos nos olhos

20/08/2008


“Ei Vesgo, chega aí. Pede mais um uísque, deixa te falar umas coisas, já que você conhece as coisas por aqui, mas muita coisa mudou nestes últimos 4 anos”. Com essas palavras, Mestre Juba – originalmente batizado com o nome de Juarez Villela Filho – iniciou uma de suas mais recentes e brilhantes colunas. O Vesgo, nas palavras do Juba, é o técnico Mário Sérgio Pontes de Paiva.

Achei duplamente engraçado o apelido do Mário Sérgio: primeiro porque sacaneia o hómi, segundo porque também sou vesgo. Ontem mesmo, ao sair da Secretaria da Saúde, ria sozinho ao lembrar o epíteto¹, “vesgo”, enquanto me dirigia ao ponto de ônibus pegar a condução de volta para casa (¹epíteto é o codinome que a Língua Portuguesa dá ao vocábulo apelido).

Pois bem, eu estava indo pegar o ônibus. Uma demora infernal e nada de o ônibus aparecer, quando apareceu, estava lotado e não pude entrar. Resolvi voltar a pé, apesar do medo de cair num dos trezentos e dezoito buracos, dentro e fora das calçadas, que separam o Centro e o Seminário, bairro em que assisto (sim, em uma de suas transitividades o verbo assistir significa morar).

Então fui andando pela Iguaçu – desviando dos buracos, como lhes disse – até que, no cruzamento da Iguaçu com a Buenos Aires, fui rispidamente interpelado:

- Ei, vocês aí, seus Rafaéis Lemos, vamos acertar as contas!

“Seus Rafaéis Lemos? Como assim seus Rafaéis Lemos? Eu só sou um! Rafael Lemos, no singular, desde 27/07/75! Mamãe e Papai “fizeram eu” e jogaram a fôrma fora (para o bem da Humanidade, reconheço)” – pensei de mim para mim.

Aí no que eu me virei para ver quem era o interpelador da minha pessoa, deparei-me com ele, Mário Sérgio Pontes de Paiva – o Vesgo, nas palavras de Mestre Juba – querendo resolver umas pendências comigo, na porrada. Como disse, também sou vesgo, mas sou valente e por isso respondi à altura, de cabeça erguida:

- Mários Sérgios, vocês não me metem medo! – falei isso e a galera foi ao “derílio”, como diz o seu Antunes que trabalhou comigo na Secretaria da Educação.

Feitas as considerações preliminares conforme vocês leram nos travessões supracitados, o pau ameaçou fechar feio na esquina. Até um bolinho de gente se formou ao redor de nós quatro (afinal eram dois Rafaéis Lemos e dois Mários Sérgios) e a galera entoando gritos de “porrada, porrada!”.

O técnico Rubro-Negro estava mais atacado que bandeja de salgadinho em festa de aniversário e mais nervoso que solteirona na lua-de-mel. Alterado, continuou a me enquadrar ali mesmo, na via pública. Eu também estava mais exaltado que gago em karaokê, mais irritado que virilha de mulata depois dos 500 e tantos metros de Sapucaí.

Mário Sérgio tomou pra si o travessão e disse, cuspindo pra todo lado:

- Vocês, seus Rafaéis Lemos, escreveram contra mim uma coluna de quatro páginas – na verdade só tinha duas, mas o hómi enxerga tudo dobrado – na qual vocês me desancaram! Vocês disseram que estavam fora só porque eu estava dentro. Não é isso mesmo?

- É, de fato, foi mais ou menos assim mesmo. Por quê? Não gostaram? (eu perguntei “não gostaram”, pois estava vendo dois Mários Sérgios).

- Não gostamos, quer dizer, não gostei!, respondeu-me o treinador com olhos rútilos de ódio, suponho.

- “Pobrema” de vocês!, vociferei, já me preparando pro pior (pior pra eles, aliás, pois eu estava mais irado que torcedor do extinto Paraná Clube e estava pronto para fazer um estrago neles dois. Ah, falei “pobrema” porque no nervoso a gente esquece das regras gramaticais, por conta da adrenalina, também chamada de naftalina pelo atacante Jardel).

- Ah, vocês querem tomar uns socos nas caras sujas, Rafaéis?

- Perem aí, Mários Sérgios, vamos – antes de continuar a contenda – fazer um trato, pois o povão aqui que está assistindo ao nosso combate não está entendendo chongas. Cada um de nós fecha um olho e aí a conversa passa a ser no singular. Briga já é uma coisa feia; agora briga de vesgo chega a ser horrível.

O povão gostou da idéia e exigiu que cada vesgo fechasse um olho para que a briga saísse mais satisfatória.

- Aceito fechar um dos olhos, mas vocês fecham primeiro, Rafaéis!

- Negativo! Ou fechamos juntos, ou não fecho primeiro nem a pau que o povão vai acabar pensando que estou aqui piscando pra você e aí meu conceito com a galera da Caveira cai a níveis abissais.

- Então fechamos juntos.

- Combinado, Mários!

Em face do acordo, a galera que estava em volta contou o popular “1, 2 e... 3!” e os vesgos se reduziram a caolhos, cada qual com um dos olhos nervosamente cerrados (olho nervosamente cerrado é aquele que fica mexendo o tempo todo a ponto de os cílios ficarem tremendo. Estilo Antônio Lopes).

Chegou-se a um ponto-comum quanto aos olhos, mas a paz ainda estava longe de reinar naquela esquina. O diálogo tenso tomava dimensões de autêntica discussão de porta de bar.

- Pois então, seu Rafael Lemos, não gostou da minha vinda pro Atlético, né?
- Não!
- E por quê?
- Porque você fez lambança na decisão de 2004, Mário Sérgio!
- Ah, fiz lambança é? E você no meu lugar faria o quê?
- No teu lugar eu faria uma plástica, pois tu é mais feio que bater em mãe por causa de mistura²! (²Mistura, na linguagem dos mais humildes como eu, significa: “tudo aquilo que, como o nome diz, se mistura à famosa dupla arroz e feijão e que deixa a dupla mais saborosa e nutritiva. Ex.: Carne, frango, ovos e bacon (pronuncia-se beico, conforme ensina o idioma francês que aprendi durante visitas a Cidade do Leste-PY nos meus tempos de sacoleiro). Dependendo da grana, entram na mistura: salsicha, sardinha e uma saladinha de alface, tomate e cebola!).

A galera explodiu e pegou no pé do Mário: “Feio, feio, feio!” – eu abri um sorriso!

- Sou feio, mas você não fica atrás. Olha só o tamanho do teu nariz, Rafael! Parece uma coifa!

A galera explodiu de novo, agora contra mim: “Nariz de coifa, nariz de coifa, nariz de coifa!” – entristeci-me, com justa razão, e contra-ataquei.

- Pelo menos eu ainda tenho cabelo, né, Mário Sérgio!

Pra quê? A galera veio em uníssono: “Careca, careca, careca!” – Rafael 2 a 1!

- Sou “carreca”, mas ganho um “salárrio grrandão” – humilhou-me Mário Sérgio, deixando-me, definitivamente, sem argumentos e empatando a partida. Placar final: Rafael 2 X 2 Mário Sérgio. Melhor assim, ficamos empatados.

Mas como pobre não tem pena de pobre, a galera, em êxtase, cantou contra mim: “Póoooooobre, pó, pó, pó, pobre! Póoooooobre, pó, pó, pó, pobre!”.

A minha dor foi tanta por conta da musiquinha cantada pela galera que eu acabei chorando. Por ser vesgo, minhas lágrimas do olho direito correram por minha face esquerda - e vice-versa.

Vencido e aterrado na minha condição de pobre, continuei andando pelas calçadas de Curitiba, desviando dos trezentos e dezoito buracos que separam o Centro e o Seminário, bairro em que assisto.

Apesar da enorme tristeza e da humilhação, ainda reuni forças para olhar para trás e ver Mário Sérgio Pontes de Paiva morrendo de rir da minha pobreza.

E ele ria tanto que as lágrimas do olho esquerdo dele escorriam pelo lado direito da face e vice-versa, afinal de contas, ele também é vesgo! Vesgo e feio, friso, de uma vez por todas!

P.S.: Fessor Mário Sérgio, desculpa aí a brincadeira. Apesar de a minha recepção a você não ter sido lá muito cordial, desejo-lhe boa-sorte nessa empreitada à frente do Atlético. E sabe como é torcedor, né, Fessor? Um 5 a 0 daqueles sempre diminui a raiva...


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