Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

O piá que fazia pipas

18/08/2008


As histórias estão na vida. Eu só me encarrego de ver, ouvir, trocar os nomes e fazer crer que tudo não passa de ficção. Aos que perguntam se o que escrevo é mentira, costumo responder: “É mentira, é tudo mentira!”. Dói menos e eu ainda ganho fama de ficcionista, coisa bastante interessante pra um sujeito que brinca de escrever.

Curitiba são muitas. Uma delas é a do Vampiro. A Curitiba do Vampiro não é a mais assustadora, tampouco é a mais cruel. Curitiba são muitas. Uma delas é a da propaganda institucional que, independente do partido, mostra uma cidade bonita e humana. A Curitiba oficial não é a mais bonita, a Curitiba oficial não é a mais humana.

Curitiba são muitas e numa delas nasceu Paulo Roberto – o Paulinho – apelido que caía bem a um guri de corpo tão franzino. Paulinho, o primogênito, era irmão de Francisco, três anos mais moço, ambos filhos de dona Estela, cujo marido havia morrido numa briga de bar, defendendo a honra de uma prostituta que lhe fazia o papel de amante e de fornecedora de cocaína. Estela, Paulinho, Chico, o pai morto a tiros, a amante prostituta e Deus: agora você está apresentado a uma legítima família curitibana. Curitiba são muitas.

A Curitiba onde nasceu Paulinho era repartida em Vilas, hoje fundidas em setenta e cinco bairros cuidadosamente desenhados nos mapas do Instituto Municipal de Planejamento e Urbanismo. Olhando o mapa tudo parece tão perto, mas na vida real as distâncias costumam saltar aos olhos. As distâncias físicas machucam o corpo; as distâncias sociais machucam a alma. Pobre em Curitiba é machucado por dentro e por fora. Dona Estela, Paulinho e Chico eram pobres. Traziam consigo, no corpo e na alma, incontáveis cicatrizes. Algumas desapareceram; outras, não.

Dona Estela era balconista de uma padaria no centro histórico de Curitiba. Emprego modesto, muitas horas de trabalho atrás do balcão. Chegava e saía sempre cansada, nunca teve ânimo – ou curiosidade - para erguer os olhos e ler a orgulhosa inscrição que atestava “Tradição e qualidade desde 1913”. O gerente da padaria era um sujeito rude, homem de poucas palavras e que se limitava a ser gentil com os clientes, e só com os clientes.

Os melhores pães e broas, as melhores tortas e bolachas e os frios mais frescos e saborosos, tudo isso, passava pelas mãos de Dona Estela que antes de sentir desejo de provar essas delícias, sentia tristeza por não poder levá-las para casa e saciar o apetite dos filhos. Uma senhora havia sido demitida por ter furtado meio quilo de presunto. Ela não se atreveria a perder o emprego, embora a tentação fosse grande de levar consigo boa partida de queijo, de presunto e de pão.

O máximo que conseguia era levar, duas ou três vezes por semana, as broas úmidas que haviam ficado ressecadas e que por isso já não podiam ser vendidas pela padaria, sob pena de serem colocadas em xeque a tradição e a qualidade conquistadas desde 1913. Quando sobravam broas ressecadas, Dona Estela pedia ao gerente autorização para levá-las para casa e ouvia como resposta: “Pode levar, pois broa seca assim nem porco come!”. Ela sorria, sem jeito, para disfarçar o choro e ia embrulhar as broas que serviriam de jantar para os filhos.

Dona Estela embrulhava as broas em quatro ou cinco voltas de um papel fininho, depois amarrava tudo com barbante e levava para casa o pacote, caminhando pelas ruas de pedra, de olhos baixos, para disfarçar as lágrimas que ameaçavam lhe escorrer pela face. A Curitiba do Vampiro não é a mais assustadora, tampouco é a mais cruel. Do outro lado da cidade, numa vila perdida, Paulinho esperava a chegada da mãe.

Havia três grandes motivos para a espera: ver a mãe chegar em segurança, comer a broa que ela trazia e aproveitar o papel e o barbante do embrulho para fazer pipa. Mal a mãe apontava no começo da rua e Paulinho já vinha ao seu encontro: “Mãe, tava preocupado! Que saudade, mãe!” – e logo atrás vinha o Chico para repetir a cena e encher de alegria o coração materno.

“A mãe trouxe aquela broa sequinha que vocês gostam. Aquela que fica mais gostosa quando a gente molha no café!”. E o anúncio materno botava na cara da piazada um sorriso que só a alegria consegue criar. “Então vamos rápido, mãe, pois ainda precisa ferver água pra fazer o café!” – ordenava Paulinho, trazendo Dona Estela pela mão como se assim ela pudesse andar mais ligeiro.

Depois do café com broa, Paulinho pegava o papel do embrulho, alisava, cortava as partes amassadas e esticava o barbante, sempre sob o olhar atento e curioso do irmão Francisco. Paulinho fazia pipas e vendia pela vizinhança, ganhando o dinheirinho que, segundo ele, seria usado para comprar uma camisa oficial do Atlético, seu time de coração. Francisco olhava tudo curioso, como se diante dele existisse não apenas um irmão, mas um gênio!

Naquela noite, após o café com broa, Paulinho se preparou para fazer mais uma pipa. Mais uma, não. Desta vez, ele faria uma pipa para ele, e não uma pipa para vender aos vizinhos. Paulinho pegara o papel, o barbante, umas varetas que lhe foram presenteadas pelo dono da venda, seu Almir, e tintas guache que lhe foram dadas pela Professora Débora, a moça que ensinava Artes na escola da vila. Paulinho estava pronto para fazer a sua pipa, com as cores do Atlético, uma vez que o vermelho e o preto já estavam garantidos nos potinhos trazidos da escola.

Quando Paulinho ia começar os trabalhos, ouviu o pedido do irmão: “Me ensina?”. Surpreso, Paulinho perguntou: “Por que você quer aprender a fazer pipas?”. Obteve resposta nada esclarecedora: “Porque sim, ué!”. E como pouco adiantava levar adiante aquele diálogo, permitiu que o irmão pudesse ter a preciosa lição e, na condição de Mestre, Paulinho se sentiu importante, sentiu-se rico.

Pensou: “Pobre é quem não tem o que dividir e nem tem o que ensinar. Eu tenho papéis, barbantes, cola, varetas e tintas para dividir com meu irmão. Eu sei fazer pipas e posso ensinar o meu irmão e, quem sabe, ele pode me ajudar a fazer pipas e a ganhar dinheiro pra comprar minha camisa oficial do Atlético!”. Pobreza é não ter o que dividir, é não ter o que ensinar. Naquela casa não havia espaço para a pobreza. Paulinho estava pronto para fazer a pipa e para ensinar seus segredos ao irmão Chico. Segredos a gente só conta para um irmão!

E a aula foi iniciada. Cola daqui e dali, tesoura, barbante, varetas. “Entorta um pouco mais, Chico!”, “Se passar muita cola a pipa fica pesada e não sobre direito!”, “Ô piá burro! Já disse que é pra botar menos cola!”, “Aí, Chico, é desse jeito mesmo!”, “Pega a tinta que agora só falta pintar de vermelho e preto, Chico!”.

Dada a ordem, Chico foi até o quarto e trouxe as tintas: potinho verde e potinho branco, para espanto de Paulinho. “Tá de sacanagem comigo, Chico? Pega os potes certos: tinta vermelha e tinta preta, das cores do Atlético!”. Chico, olhando o irmão nos olhos, revelou:

- Eu quero minha pipa verde e branca, pois eu gosto do Coxa! (Segredos a gente só conta para um irmão!).

Paulinho, atônito, tentou demover o irmão da idéia de pintar a pipa de verde e branco, mas não teve jeito. Chico protestou:

- Eu quero minha pipa verde e branca. Você já fez pipa pra todo mundo, menos pra mim, Paulinho! O que é que te custa?

Paulinho fez as contas em silêncio e contabilizou seu prejuízo: ficaria sem sua pipa do Atlético, ficaria sem a pipa para vender no dia seguinte, teria de esperar um novo embrulho de broas para obter material para outras pipas e, por fim, houve por bem atender ao pedido do irmão. “Pobre é quem não tem o que dividir e não tem o que ensinar” – pensou Paulinho enquanto ajudava o irmão a pincelar as cores do inimigo na pipa que era para ser vermelha e preta.

Daquela noite em diante, Paulinho e Chico fizeram juntos dezenas de pipas, vendidas por toda a vizinhança. Paulinho nunca conseguiu fazer a sua pipa Rubro-Negra, tampouco as pipas lhe renderam dinheiro suficiente para comprar a sonhada camisa oficial do Atlético. Dona Estela morreu logo depois de Paulinho completar dezoito anos; Chico ainda nem tinha quinze. Os irmãos tiveram de se separar. Paulinho foi servir o exército juntando-se ao 5º Esquadrão de Cavalaria Mecanizada; Chico foi morar com parentes em Paranaguá. Nunca mais iriam se encontrar.

Paulinho se casou, formou-se Advogado e tem um bom emprego na Justiça Federal. Tem casa, carros e dois filhos atleticanos: Estela, hoje com 17 anos; e Francisco, prestes a completar 14. Dia desses, foram os três, vestidos com a Camisa do Atlético, assistir jogo na Arena. Caminhavam ligeiro pela Getúlio Vargas, com seus cartões de sócio em punho, prontos para entrar na Baixada.

De repente, Paulinho parou diante de um varal onde estavam penduradas as bonitas camisas Rubro-Negras e as pipas do Atlético. Apesar dos protestos dos filhos - Pai, tá em cima da hora! Vamos! -, Paulinho perguntou o preço da pipa, comprou e a colocou debaixo do braço como se fosse um pacote de broas, como se fosse um pedaço da infância, como se fosse um sonho. E entrou chorando na Arena da Baixada, como se ainda fosse um piá ou como se fosse o homem mais rico do mundo.

As histórias estão na vida. Eu só me encarrego de ver, ouvir, trocar os nomes e fazer crer que tudo não passa de ficção.


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