Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Conversa ao pé do mouse

15/08/2008


Esta coluna não é sobre futebol. Hoje acordei com vontade de conversar fiado, de contar histórias. Amigo, pega um café aí do outro lado, sente diante do micro e vamos prosear. Já volto, vou pegar um café pra mim também. Pronto, voltei.

Tava aqui lembrando da minha já distante infância. Eu, quando tinha sete anos, queria ser o Carneiro Neto, conforme já lhe disse, amigo, aqui mesmo neste espaço. Tinha um guri que jogava bola com a gente que queria ser o Bátimã, parceiro do Robin. Eu achava esquisito um guri querer ser igual ao Bátimã, mas respeitava.

Certa manhã quebrou o pau lá no nosso futebol e saiu todo mundo na porrada. Eu disse pro guri: “Você nunca vai ser igual ao Bátimã, porque o Bátimã não existe!” – e o viadinho retrucou: “E você nunca vai ser igual ao Carneiro Neto, porque o Carneiro Neto também não existe!”.

Ah, pra quê? Subi correndo três andares até chegar ao meu apartamento e lá peguei a Gazeta. Depois desci e esfreguei na cara do moleque a coluna do Carneiro Neto: “Aqui, seu viado! Fala agora que o Carneiro Neto não existe, seu merda!” – e a porrada continuou à solta por mais uns quinze minutos, só vindo a acabar quando nossas mães nos chamaram para o almoço.

Antes de subirmos aos apartamentos, ainda deu tempo para as últimas provocações: “O merda-viado-imbecil do Bátimã não existe!”; “O Carneiro Neto é que não existe!”. A partir daquele dia, nunca mais olhei na cara daquele guri filho da puta, a recíproca foi verdadeira e o tempo passou...

Dia desses, por conta de compromissos profissionais, fui a uma das Varas de Justiça desta Capital. Estava eu lá, folheando um processo, quando se aproximou de mim um cara, vestido de preto, e fez a pergunta: “Você por acaso não se chama Rafael?”. Resposta óbvia: “Sim, eu me chamo Rafael”. Vieram outras.

- Você não morava ali na Iguaçu, jogava bola na garagem do prédio e queria ser igual a um certo Carneiro Neto?
- Eu mesmo. Você tem a memória boa!
- Você, não! Pra você eu sou Excelência, sou Meritíssimo! Não está vendo minha capa?
- Opa, Vossa Excelência, pelo que percebo, está querendo sair na porrada, certo?
- Só se for agora! Não está vendo minha capa? Eu sou o Bátimã!
- O Bátimã não existe, seu viado, quer dizer, Vossa Excelência!
- Quem não existe é o tal Carneiro Neto!

E foram uns vinte minutos de sopapos que só acabaram quando dois PMs nos chamaram para a realidade aos gritos de “Doutores, onde é que já se viu? Parecem duas crianças!”. Eu, em pleno direito de defesa, argüi: “Foi o doutor Bátimã que começou!”, aí o Bátimã, integrante da Sala de Justiça do Paraná, asseverou: “Foi ele! Foi ele!”.

Antes de nos afastarmos, ainda deu tempo para as últimas provocações: “O merda-viado-imbecil do Bátimã não existe!”; “O Carneiro Neto é que não existe!”. A partir daquele dia, nunca mais olhei na cara daquele juizinho filho da puta, mas já que ele gosta de analisar provas, segue aqui a maior delas: um e-mail que recebi do super-herói Carneiro Neto, por ocasião da minha coluninha “O Menino que sonhava ser Carneiro Neto”.

Eis que segue, entranhado aos presentes Autos desta coluna, o conteúdo integral da mensagem:

“De: Carneiro Neto
Enviada: sexta-feira, 8 de agosto de 2008 17:54:13
Para: 'Rafael Fonseca Lemos' (rflemos75@hotmail.com)

Caro Rafael, quem tem de agradecer sou eu. Primeiro, pela sua audiência, pois todo o trabalho que realizei, através dos anos, foi para o ouvinte e para o leitor, sendo você um receptor qualificado. Segundo, pela sua gentileza de manifestar-se publicamente através do site Furacao.com daquela forma em relação a minha pessoa. Parabéns pela sua atuação ao lado dos demais companheiros do Furacão e, novamente, agradecido. Cordialmente, Carneiro Neto”.

Juntada a prova, seguem os Autos conclusos para o Meritíssimo Senhor Juiz de Direito. Quem sabe ele, ao prolatar a sentença, junte um e-mail do Bátimã endereçado a ele, mas eu duvido afinal de contas “O merda-viado-imbecil do Bátimã não existe!”; mas o Carneiro Neto existe e é meu Amigo, como ficou provado!

Amigo, peraí que eu vou pegar mais um café e já volto. Voltei pra contar meus causos, pois hoje eu quero é prosear. Nos meus tempos de maré baixa e baixa auto-estima, namorei uma pedagoga durante 18 meses. A miserável falava “vurdúncio”, e eu nunca me senti à vontade para fazer a correção (o certo é “furdúncio”).

Era um tal de ela falar “Aquilo tava um vurdúncio!, A sala tava um vurdúncio!, Tudo era um vurdúncio!” que eu acabei me acostumando a viver no “vurdúncio” dela. Tempos ruins pro meu lado, mas como não há mal que nunca acabe, felizmente acabou.

Acabou e eu conheci a Edith, moça estudada, formada em Engenharia, Letras e Psicologia; hoje, pós-graduanda (aliás, honestamente, não sei o que ela viu em mim, pois além de feio e pobre, sou burro). Mas eu ia dizendo que conheci a Edith e sabe como é começo de namoro né, a gente quer impressionar, quer fazer bonito.

Pois bem. Certa noite, durante uma conversa literária, eu ia me espremendo todo pra ver se saía alguma coisinha que se aproveitasse e que pudesse impressionar a Edith. Enquanto eu me espremia, a Edith mandava ver, com a autoridade literária de quem realmente sabe, sobre todos os autores nacionais e importados. Ela falando de Shakespeare, T. S. Eliot, Fernando Pessoa, Lord Byron, Mário Quintana, Jorge Amado e eu me defendendo, a duras penas, às custas do meu parco conhecimento empírico elaborado só na base de Drummond e Nelson Rodrigues.

Lá pelas tantas ela virou o jogo num só lance, da esquerda pra direita do campo, num passe de Gérson, e me sapecou: “Rafa, e sobre Casa-grande, do Gilberto Freyre, o que é que você acha?” – gelei! Gelei por desconhecer completamente a obra, mas não perdi a pose. Rindo, sentenciei: “Bem, eu acho Casa-grande, do Gilberto Freyre, uma beleza; mas sou mais o apartamento de cobertura do Millôr, em Ipanema!”.

Ela morreu de rir, judiação, achando o máximo o meu senso de humor, sem saber que, na verdade, eu não sabia bulhufas da tal obra e do tal Gilberto Freyre (repito, não sei o que ela viu em mim, pois além de feio e pobre, sou burro; mas sei improvisar que é uma beleza). Tempos bons pro meu lado, que seja um bem que sempre dure. E agora que ela sabe da minha fraude – e da história do “vurdúncio” – vai rir ainda mais!

Amigo, pega aí o último café. Ouve essa. Me apareceram uns gozadores – João Guilherme Mercer, Eduardo Carvalho e Guilherme Oro – e a todos eles mando o meu cordial abraço. Pois bem, são uns gozadores, uns debochados. Querem que eu escreva um livro e sugeriram até nomes para a “Obra”.

Pois bem, hoje, orgulhosamente, venho informar que já redigi o primeiro trecho do meu futuro livro. Segue em primeira mão:

As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram.

Só não sei ainda se batizo a obra de “Os Lusíadas” ou se chamo de “A Odisséia”, mas até mandar para a gráfica eu decido.

Amigo, a prosa está boa, mas vou indo. Apareça qualquer hora aqui neste sítio chamado Furacao.com pra gente tomar um cafezinho gostoso e continuar essa conversa ao pé do mouse.

P.S.:

1. Gilberto Freyre publicou Casa-grande e Senzala, em 1933, época em que o Brasil vivia um de seus momentos decisivos. A revolução modernizadora – desencadeada em 1930 – transformava a face tradicionalmente rural do país, alterando-lhe não apenas a estrutura econômica, mas também as instituições sociais e políticas. No plano cultural ocorria uma notável efervescência: assimiladas as conquistas estéticas renovadoras da Semana de Arte Moderna, buscava-se agora a discussão da realidade brasileira, cuja ponta do novelo no século XX fora a publicação de Os Sertões, em 1902.

2. Esta coluna eu dedico a todos os meus amigos e pra eles eu deixo as sábias palavras de Drummond, extraídas do poema "Mundo Grande":

"Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos".

Essas palavras me explicam...


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