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José Henrique de Faria
José Henrique de Faria, 74 anos, é economista, com Doutorado em Administração e Pós-Doutorado em Labor Relations nos EUA. Compareceu ao primeiro jogo do Clube Atlético Paranaense em 1950, no colo de seu pai. Seu orgulho é pertencer a uma família de atleticanos e ter mantido a tradição. Foi colunista da Furacao.com entre 2007 e 2009.
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O problema é o cozinheiro
20/05/2008
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Há muito Abelardo pretendia reunir os amigos para comemorar, com uma churrascada, todos os aniversários, todas as alegrias, todas as esperanças, todos os recordes e, também, para colocar para fora todas as frustrações, todos os insucessos e decepções. Acontece que nunca dava certo juntar todo mundo. Quando uns podiam outros não, quando todos podiam o tempo não ajudava.
Até que, um belo dia, os astros colaboraram e a churrascada foi marcada. Abelardo, que não era um bom churrasqueiro, mas que dava muitos palpites nesta atividade, pensando em dar mais atenção aos amigos, decidiu contratar um cozinheiro. Não era a primeira vez que isto acontecia. Mas, agora, finalmente, Abelardo havia encontrado um churrasqueiro à altura da festa.
No dia marcado, logo cedo, Estevão apareceu na casa de Abelardo. Estevão era o nome do churrasqueiro (i). Sujeito tranqüilo, bem falante, chegou vestido a caráter, todo pilchado (ii), com sua bombacha, bota, espora, guaiaca, lenço no pescoço, chapéu da aba larga e outras pilchas. Na cinta uma faca daquelas tão afiada que dava para tirar lasca de carne e cortar uma lonca (iii). Estevão estava mais faceiro que ganso novo em taipa de açude (iv). Era a oportunidade de mostrar serviço, de ficar conhecido no vizindário (v), de fazer a churrasqueada em uma churrasqueira de primeira, com toda infra-estrutura.
Abelardo indicou a Estevão o lugar. Todo coberto, uma baita pia, uma mesa para esparramar o material da festa que era para não deixar ninguém de canto chorado (vi). Estevão, pensando na costela, meteu fogo no carvão e foi dar um talho na pinga que estava sobre a mesa e que era de alguém que lá havia deixado. Aquela esquentada na tripa era o sinal para começar bem o dia. “Seu Abelardo, cadê a carne, tchê? Não quero te atucanar, mas já fiz o fogo pra costela e se não meter esta lambiscaria (vii) agora no fogo nós vamos despenhar canhadão abaixo!” (viii).
Abelardo berrou lá da frente da casa: “Tudo o que você precisa está aí. Seu trabalho é fazer o churrasaco.” Estevão olhou em volta e viu um freezer. “Tá lá!”, pensou. Abriu o freezer e só encontrou uma garrafa de vodca e uns peixes de água doce. Nada de costela. Na geladeira, encontrou alface, abobrinha, cenoura, agrião, batata, tomate, cebola e dois vidros de maionese light. Estevão, que não era homem de despontar o vício (ix), foi falar com Abelardo. “Sem carne não dá!” Mas, Abelardo, sujeito duro como carne de pescoço e metido a bater como cincerro de égua madrinha (x), não pestanejou: “se vire!” “Churrasco de improviso?”, pensou Estevão. “Só se eu passar o buçal de couro cru!” (xi).
E lá se foi Estevão a tentar fazer milagre com o que tinha. “Seu” Abelardo o contratou para fazer churrasco, mas lhe deu um material que não o permitiria atingir os objetivos. O povo foi chegando e pegando suas cadeiras, babando de fome e morto de sede. Abelardo recebia a todos e prometia o melhor churrasco da vida deles, no melhor lugar, com a melhor bebida, a melhor música que, nesta altura, já tocava na vitrola chamando os convidados para palmear porongo (xii).
Estevão mexe daqui, fuça dali, experimenta montar um prato, troca por outro e lá vai ele. Tira alface e coloca cebola. Tira cebola e coloca batata. Deixa batata e coloca alface. Tomate, alface, cenoura, abobrinha, cebola e nada de carne. Mas, o objetivo traçado é o churrasco. Estevão já estava jururu como carancho em tronqueira (xiii). Pensou em levantar a grimpa (xiv), mas educado como era tentava fazer de tudo para que a festa desse certo.
Assim, sem mais, lá pelo meio dos preparos, aparece um vizinho a pedir tomates e alface. Abelardo negocia e Estevão fica a ver navios. No quintal, um pé de abacate anuncia um ingrediante a mais na salada. Mas, o abacate ainda está verde. Já no desespero, vai ao freezer e saca o peixe congelado. Liga o micro-ondas, descongela o peixe, prepara o bicho, aviventando o passo (xv) que o pessoal está faminto. Uma salgada no couro do peixe, peixe na grelha e lá está finalmente o churrasco.
“Churrasco de peixe?”, mofou (xvi) Abelardo. “Onde já se viu? Eu contratei você para fazer um churrasco de verdade. O que eu vou dizer para as pessoas que acreditaram nas minhas promessas? Eu lhe dei as condições, toda infra-estrutura e você não consegue atingir as metas?”
“Mas, bah! Tu me dás pia, mesa e churrasqueira. Depois tu me dás alface, cebola, cenoura, tomate, batata e abobrinha. Para churrasco isto é curto como coice de porco (xvii). Ainda, no meio da salada, tu me tiras o tomate e a alface. Por acaso, eu achei um abacate verde no quintal, que nem estava pronto para a salada. Peguei o que tinha, um peixe congelado. Como é que tu queres um churrasco, tchê?” Abelardo, pachola como gato de criança (xviii), não gostou dos resultados e tomou uma decisão. Mandou embora o churrasqueiro. “O problema é o cozinheiro”, explicou ele aos convivas.
Estevão, enredado nas quartas (ixx), foi-se a la cria (xx). A vida continuou e tudo ficou do mesmo jeito na casa de Abelardo, quer dizer, mais liso que tramela de despensa (xxi).
Notas de pé de página
i Estevão era gaúcho, mas bem podia ser mineiro, paulista, pernambucano.
ii Gaúcho vestido a rigor.
iii Tira muito fina de couro pelado que se usa para fazer trançados.
iv De bem com a vida.
v Vizinhança.
vi Não deixar ninguém sossegado.
vii Pequena porção de comida.
viii Fracassar.
ix Contentar-se com pouco.
x Teimoso e que gosta de aparecer.
xi Enganar usando de esperteza.
xii Tomar chimarrão.
xiii Tristonho, melancólico.
xiv Reagir, não se submeter.
xv Andando depressa.
xvi Debochou, zombou.
xvii Insuficiente para o fim que se destina.
xviii Pedante, vaidoso.
xix Atrapalhado, embaraçado.
xx Pegou a estrada e foi embora.
xxi Difícil de segurar, escorregadio.
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