José Henrique de Faria

José Henrique de Faria, 74 anos, é economista, com Doutorado em Administração e Pós-Doutorado em Labor Relations nos EUA. Compareceu ao primeiro jogo do Clube Atlético Paranaense em 1950, no colo de seu pai. Seu orgulho é pertencer a uma família de atleticanos e ter mantido a tradição. Foi colunista da Furacao.com entre 2007 e 2009.

 

 

O Dono da Voz e a Voz do Dono

09/04/2008


Em entrevista publicada na Gazeta do Povo do dia 31 de março, Petraglia, a voz do dono, afirmou que eu, dono da voz, enquanto presidente dos conselhos do Clube Atlético Paranaense, nada fiz e que atualmente utilizo o site Furacao.com para indicar à diretoria o que deve ser feito. Disse também a voz do dono, entre outras coisas, que foram buscá-lo em casa para assumir o clube.

Um dia, meus filhos e netos, com aquela curiosidade que eu tenho a respeito de meus antepassados, irão esbarrar nestas palavras soltas no ar. Foucault, filósofo francês, em certa fase de sua vida intelectual, acreditava que quando o sujeito pronunciava palavras sobre as coisas, estas eram recebidas pelos outros sujeitos apenas como discursos. O sujeito, a coisa e a história desapareciam, pois o que sobrava era o discurso. Esta não é a minha opção para lidar com este tema. Contudo, tenho notado que é possível verificar que mais do que discursos sem sujeitos, sem coisas e sem história, há quem deseje escrever não a história, mas outra história, sobre outras coisas, para ser o único sujeito do discurso, a voz do dono de um discurso que se pretende único. Esta aspiração à divindade discursiva é alimentada pelo ego inflacionado da voz do dono.

Quando o sujeito proprietário e “único intérprete verdadeiro” do discurso de uma história se manifesta sobre ela, é porque ou recusa outra leitura ou porque não deseja revelar a coisa, já que nenhuma destas lhe convém. E nem poderiam, porque a história a ser contada e a revelação da coisa destroem o pedestal. Por que razão, perguntam os curiosos, um ambiente sem fraturas, tão harmonioso, tão bem sucedido, segundo a interpretação da voz do dono, foi expulsando paulatinamente de seu convívio colaboradores tão dedicados? Por que os afastados não desejam mais se manifestar publicamente? Por que os que desejam cooperar não conseguem suportar tanta delicadeza, participação e democracia? Quando a voz do dono ganha a designação popular de “deus” porque se impõe como a voz do dono, embora sua modéstia aparente não lhe permita confessar, no íntimo ele acredita que cumpre este papel. E é aí que toda a explicação vem à tona. E vem por si só, sem outros discursos.

Cartas na mesa. Discurso com sujeito, objeto e história. O problema deve ser dito às claras. Da parte deste sujeito que enuncia este discurso, do dono da voz, nada há a dever à voz do dono. Jamais emprestei a esta voz qualquer dinheiro ou lhe fiz qualquer favor. Tenho absoluta autonomia para escrever e dizer o que penso sem pedir licença ou permissão. Não tenho medo da voz, do tom da voz ou da altura da voz do dono. Sou um cidadão livre e independente. É isto que assusta a voz do dono. Comigo não tem acordo. Assim, posso abertamente criticar o que entendo deva ser criticado, sugerir o que entendo deva ser sugerido, elogiar o que entendo deva ser elogiado. Quem quer que leia uma crítica que faço saberá que é autêntica. Quem quer que leia um elogio saberá que é honesto e que não foi encomendado por ninguém. Meu único compromisso é com o Clube Atlético Paranaense. As vozes dos donos passarão. Como um dia também passará o dono da voz. Mas, os filhos, netos e amigos do dono da voz saberão que apesar dos algozes, este dono tinha voz.

Ora, do alto de uma memória que não deseja lembrar o que não convém, chega o discurso sem sujeito, expresso pela voz do dono, a cobrar o que deveria eu ter feito. Recordar é viver. Quando, em 1995, assumi a Presidência dos Conselhos Consultivo e Deliberativo, o fiz porque naquele momento havia uma divisão interna nos conselhos, com a possibilidade de se formarem três chapas. Os conselheiros solicitaram que eu assumisse como alguém não vinculado a nenhum dos grupos e, portanto, sem compromissos prévios. Aceitei pelo clube. Este foi o meu primeiro “não fez nada”.

As atividades de presidência destes conselhos eram políticas. Diferentemente das que aparentemente são hoje, em que há uma dança de cadeiras sem que o “homem forte” saia de cena, não importa onde esteja. As atividades dos conselhos não eram administrativas ou executivas. Hoje, já não se sabe aonde começa uma e termina outra. A voz do dono não distingue conselhos. Porque não se fez algo antes, pergunta a voz do dono? Porque antes não havia “dono”.

Como conselho consultivo e deliberativo, todos os conselheiros acompanharam a situação dramática do clube. Era necessário que se operasse uma mudança. Discutimos um planejamento, que pouco evoluiu. Ninguém desejava assumir a direção do clube, tão grave era o problema. Finalmente, surgiu uma solução intermediária: criar um grupo gestor, formado por atleticanos com experiência no clube para reverter aquele quadro. Entretanto, havia dois obstáculos formais e políticos. O primeiro era o de verificar com o Presidente e o Vice-Presidente a possibilidade de eles concordarem em se declarar impedidos de continuar na direção. Isto foi feito e para tanto contamos com a postura realmente atleticana de Husseim Zraik e de Oliveira Franco. Husseim e Franco não renunciaram como disse a voz do dono. Foi feito um acordo. Esta é a verdade. Este foi o segundo “não fez nada” do dono da voz.

Contudo, como colocar uma comissão gestora na direção do clube? Ninguém desejava assumir a presidência e as responsabilidades daí decorrentes. O Regimento não permitia. Eu reescrevi o Regimento do Clube Atlético Paranaense e o apresentei ao Fleury, então Consultor Jurídico, que fez alguns ajustes na proposta. O novo Regimento modernizava a gestão e os procedimentos e retirava regramentos ultrapassados. O novo regimento também previa que em caso de vacância da Presidência e em não havendo quem ocupasse esta função, o Conselho Deliberativo poderia indicar uma Comissão Gestora. Tal comissão teria um coordenador. Enquanto isto as articulações para compor esta Comissão Gestora se organizavam. Jamais solicitei a quem quer que seja que a compusesse, muito menos ao Petraglia, que, aliás, sequer conhecia.

O novo Regimento foi aprovado no Conselho e, após isto, registrado em cartório. A partir daí, foi marcada uma reunião do Conselho Deliberativo para que se procedesse a transição entre a presidência e a Comissão Gestora. Tratava-se, nesta altura, de uma formalidade, pois a Comissão já estava previamente constituída. Como determinava o regimento, a convocação deveria ser publicada com cinco dias de antecedência em jornal. No domingo, o Clube Atlético Paranaense perdeu aquela fatídica partida para o Coritiba por 5 x 1. Fatídica, mas contraditoriamente libertadora. Conta a lenda que Petraglia entrou no clube, deu um soco na mesa e decidiu assumir o clube. Assim, sem mais nem menos, como se o Clube Atlético Paranaense, apesar de suas dificuldades, fosse uma instituição abandonada, sem presidente, sem conselho. Nascia um mito. Alimentado pelo imaginário popular e por um sensacionalismo midiático. A reunião para a instalação da Comissão Gestora já estava definida antes daquele jogo. Reescrever o Regimento e conduzir a transição sem traumas foi o terceiro “não fez nada” do dono da voz.

Exatamente no dia da reunião do Conselho, Petraglia, pouco antes do início da mesma, comunicou que havia desistido de assumir a comissão. Uma pequena reunião ocorreu em que algumas pessoas tentaram demovê-lo desta decisão, porque todas as providências haviam sido tomadas de acordo com o que fora combinado. Em sua entrevista Petraglia vem a público afirmar que foram buscá-lo. Não sei se alguém foi, mas confesso que eu não fui. Contudo, apesar da alegada desistência, não pareceu a ninguém presente naquela reunião que o mesmo foi forçado a tomar a atitude que tomou. Ao contrário. Todos estavam convencidos de que ele de fato desejava esta função. Tanto que nela está, formal ou não, mas diretamente há quase 13 (treze) anos.

A Comissão Gestora instalou-se com Ademir Adur na área financeira, Enio Fornea com um incansável trabalho na área de obras, Fleury na área jurídica, Ademir Gonçalves, Mazza, Eu, Farinhaque, entre outros, sob a coordenação de Petraglia. O Clube Atlético Paranaense saiu da segunda divisão para lugares que jamais sonhara, saiu da Baixada (vindo do Pinheirão) para a Arena, saiu do nada para um dos mais completos Centros de Treinamentos do Brasil. Há muitos méritos nesta mudança, neste desenvolvimento. Méritos que devem ser atribuídos a todos aqueles que deram muito de si ao clube. Houve uma liderança que foi decisiva. Que teve ousadia quando o grupo tinha receio. A liderança de Petraglia. Mas, a sua liderança e os méritos não significam imunidade a críticas, isenção de responsabilidades e tampouco significam eternidade.

Posteriormente, os Conselhos passaram a ser locais inalcançáveis para um professor assalariado e para qualquer pessoa que não fosse abastada o suficiente para manter-se neles. Para ser conselheiro, segundo as novas normas, era necessário pagar R$ 1.000,00 por mês, já em 1997. Depois, talvez até por certo constrangimento, criaram a categoria dos R$ 500,00. Aí começava um período de formação seletiva dos conselhos, porque parece que no clube não se sabe trabalhar com diferenças de opinião, já que somente existe uma única palavra, e é final.

Pois este dono da voz que incomoda tanto a voz do dono não participa de nenhum grupo no clube, não participa de articulações explícitas ou de bastidores para derrubar ninguém e não está interessado em assumir a presidência do clube, até porque a condição de assalariado não me permite assumir compromissos maiores. Não sou empresário, não sou proprietário de passes de jogadores, não faço intermediações, não sou profissional liberal. Sou assalariado com jornada de trabalho. Mas, especialmente, sou dono de minha voz.

Minhas colunas manifestam críticas e também sugestões. Coincidências ou não, pouco importa, mas a verdade é que muitas das sugestões que dei e que foram objeto de manifestação crítica da voz do dono, o clube as adotou. Se minhas ou não, o fato é que foram pertinentes e boas o bastante para serem adotadas. Que fale a voz do dono. Que diga seu discurso; que reclame a insuportabilidade de não ser unanimidade e não ter razão em tudo que faz; que não se manifeste nos elogios que recebe, mas apenas nas críticas que não suporta. O problema é que o dono da voz cometeu uma traição com a voz do dono.

“Foi revelada na assembléia-atéia
Aquela situação atroz.
A voz foi infiel, trocando de traquéia
E o dono foi perdendo a voz;
E o dono foi perdendo a linha que tinha
E foi perdendo a luz e além
E disse: Minha voz, se vós não [fores] minha
Vós não sereis de mais ninguém”.


Chico Buarque

Quando a voz do dono se preocupa com o dono da voz a ponto de desejar calá-lo, é porque o dono da voz está colocando o discurso da voz do dono em seu lugar. E está fazendo isto exatamente porque o dono da voz pode fazer seu discurso com sujeito, objeto e história, coisa que a voz do dono não pode.

José Henrique de Faria é ex-Presidente dos Conselhos Deliberativo e Consultivo do Clube Atlético Paranaense e professor universitário.


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