Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Você é uma nota de 50 reais

08/03/2008


“Da primeira vez que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...” (Mário Quintana).

Na estrofe transcrita, Quintana nos fala da perda da inocência. Se eu tivesse que definir aqui o que seja inocência, talvez me faltassem palavras ou, pelo menos, faltassem-me palavras precisas para tanto. Por isso, recorro às imagens e às sensações.

Inocência é aquele sentimento que queima o peito de todo estudante de Direito, quando ainda é estagiário, e se depara com uma rematada injustiça. Quando se é estagiário de Direito a gente acredita que vai mudar o Mundo escrevendo pareceres longos, contundentes e recheados de citações enérgicas:

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” (Rui Barbosa).

Já fui estagiário de Direito e já acreditei que ia mudar o mundo com meus pareceres ácidos e quixotescos. Citei Rui Barbosa, produzi uma centena de peças opinativas em Processos Administrativos Disciplinares e Sindicâncias (peças que não vinculam, necessariamente, o Administrador e tampouco vinculam a Administração), lutei contra todo tipo de barbaridade e de ilícito que eu encontrava nos procedimentos administrativos.

Nos anos de 1997 e 1998, combati, como pude, a conduta dos maus servidores públicos que deitavam e rolavam às custas da Educação: uma centena de pareceres duros e que não deram em nada! No Mundo Jurídico – constatei, horrorizado – existe de tudo um pouco, mas muito pouco existe de Justiça. “Todos são iguais perante a Lei, mas uns são mais iguais do que outros” – constatei, horrorizado. Perdida parte da inocência, procurei outros caminhos.

Desiludido com a Administração Pública, consegui emprego numa imobiliária. Achava, na minha inocência, que a iniciativa privada ia me ensinar muito acerca do dinamismo, do empreendedorismo e da pró-atividade. Ledo engano: o que eu vi foram inquilinos sendo extorquidos e abusados por cobranças impiedosas.

Quem é trabalhador e paga aluguel sabe bem do que eu estou falando: diariamente, pais e mães de família são humilhados em escritórios de cobranças e em imobiliárias e saem desses lugares se arrastando como se fossem vermes, e não seres humanos.

Foi-se embora, nesse tempo, boa parcela da minha já diminuída inocência e ficou na minha cabeça um pensamento, quase um desejo: Meu Deus, concedei a todo dono de imobiliária deste Mundo uma vaga eterna no Céu, mas que ela não seja concedida de graça, mas, sim, à custa de pesado aluguel (pesado aluguel para sempre e que a multa em caso de atraso seja uma longa estada no inferno, lugar de onde eles nunca deveriam ter saído). Segui noutros caminhos e a inocência se fragmentando.

Lecionei Língua Portuguesa por três anos, convencido de que não podia mudar o Mundo sozinho. Tornei-me professor, pois resolvi seguir os ensinamentos de Jesus, Mestre dos Mestres, e fiz vir a mim as criancinhas. Nelas plantei minhas melhores sementes e sei que frutificarão.

Mas a exemplo de Jesus encontrei Judas – vários deles - pelo caminho. O convívio com o pessoal do giz me fez perceber que os advogados não são tão ruins assim. Voltei ao Direito. Saudades das minhas “crianças”. Sentimento de dever cumprido. Saí menos inocente, mais vivido e mais vivo do que nunca: afinal não era a primeira vez que me assassinavam.

“Da primeira vez que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...”.

Na estrofe, Quintana nos fala da perda da inocência. Inocência era aquele sentimento que queimava o peito de todo atleticano quando entrava na Baixada. Se eu tiver que definir aqui o que seja essa inocência, talvez me faltem palavras ou, pelo menos, faltem-me palavras precisas para tanto. Por isso, recorro às imagens e às sensações.

Lembra quando era domingo de Atletiba, lá por 1983, e a gente já nem conseguia dormir direito no sábado à noite de tanta ansiedade? Lembra que daí, no domingo, a gente ia ao Couto Pereira e estendíamos aquelas faixas gigantescas, até meio desbotadas, onde se podia ler “Guerrilheiros da Baixada”, “Torcida Organizada Os Fanáticos” e “Nação”?

Lembra que tinha um guri chamado Joel - cabelos encaracolados e cara de piá – que subia no terceiro andar pra fuzilar o Jairo, de cabeça. Lembra? Daí corria pra massa Rubro-Negra se ajoelhava e fazia o sinal da Cruz. Lembra?

Aí no dia seguinte a gente ia pro colégio jogar bola e fazer gol só pra imitar o gesto do Joel. Cara, isso era a inocência. E em 1985 quando a gente fez um abaixo-assinado depois de ser campeão paranaense, colhendo assinaturas ali mesmo na praça, pra tentar sensibilizar a Diretoria a não desativar o Caldeirão do Diabo, mas não adiantou nada, pois eles embarcaram na aventura de jogar no Pinheirão. Lembra?

O abaixo-assinado deu em nada, pois a Diretoria não tava nem aí pro povão! Éramos inocentes, a gente achava que dava pra mudar o Mundo na base do abaixo-assinado.

Mas fomos jogar no Pinheirão, mas fomos comer – junto com o Atlético - o pão que o diabo amassou. Até que num sábado de fevereiro de 1992, bem no final de semana em que morreu o Ex-presidente Jânio Quadros, a galera se rebelou no grito uníssono de “Baixada! Baixada!”, na frente das Sociais, olho no olho da Diretoria. Daí os cartolas resolveram atender a galera e reativaram a Baixada. Eu tava lá, perdemos para a Portuguesa, mas foi um dia histórico para nós, pois reconquistamos a Baixada. Lembra?

Inocência era aquele fogo que fazia a gente escalar o alambrado em 1996 e não tinha Palmeiras que nos botasse medo. Inocência era a gente rezando na Igreja perto da Baixada para que a cirurgia do Ricardo Pinto corresse bem, pra que ele pudesse voltar a jogar. Inocência era comprar as pedrinhas da velha Baixada e guardá-las como se fossem diamantes.

Inocência era ter 26 anos de idade na cara e levar pro estádio, em 2001, uma estrelona amarela feita de cartolina e só largar dela depois de vê-la bordada na Camisa. Inocência era aquele sentimento que queimava o peito da gente quando entrava na Baixada. Lembra? A gente fazia parte do time, o time fazia parte da gente e era uma união tão grande que nem dava pra gente saber onde terminava a torcida e onde começava o time.

A gente era torcedor. Lembra? A gente fazia parte do time! A gente tinha no peito uma chama: a inocência!

Daí o tempo passou, sei lá o que aconteceu, foram levando qualquer coisa minha, foram levando qualquer coisa nossa, foram matando a gente, até que perdemos aquele jeito de sorrir que tínhamos e acabamos sós, ou sócios.

A gente era atleticano, lembra? Agora somos (só) sócios. A gente fazia parte do time. Agora a gente é uma receita. A gente cantava, com os pêlos arrepiados: “Atlético, Atlético, conhecemos seu valor” e o Atlético em nós também reconhecia um valor incalculável.

Faz tempo, muito tempo, foi no tempo da inocência, tempo que não volta mais: hoje, a gente parece que não vale nada. Hoje, a gente ficou reduzido a uma nota de 50 reais.

E é só, sócio!

P.S.: Às mulheres, parabéns neste Dia Internacional dedicado a vocês, com inteira Justiça. Com vocês começamos perdendo a inocência e acabamos por nos perder completamente.

Edith, parabéns por ser a mulher mais linda do Mundo. Por você eu me perco e me acabo, completamente tomado de amor!


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