Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

A grande dor das coisas que não passam

01/02/2008


Nasci em Curitiba, em 1975, e sempre vivi em Curitiba. Em 1979, eu tinha quatro anos. Naquela época, cortava o cabelo na barbearia do seu João, ali na Galeria do Comércio, na Praça Osório, no coração da cidade. Era meu pai quem me levava cortar o cabelo, sempre aos sábados de manhã.

Eu gostava de passear pelo centro da cidade em companhia do meu pai. Ele sempre fazia tudo o que eu queria. Em 1979, passava filme do Charles Chaplin domingo à noite, depois dos gols do Fantástico, e eu não perdia nenhum filme do Chaplin. Ficava até tarde da noite assistindo aos filmes, em companhia do meu pai, ambos enrolados no cobertorzão que a minha mãe levava lá na sala, pra esquentar a gente.

Eu era fã do Chaplin e assistia a tudo fascinado como se diante dos meus olhos se revelasse a própria vida, seus encantos, seus mistérios, sua graça e sua poesia. A vida era linda diante dos meus olhos, tudo era encantamento. Meu pai assistia comigo aos filmes do Carlitos, meu pai fazia tudo o que eu queria e a vida - para mim - era só felicidade.

Certa vez, a gente estava andando pela Praça Osório e na entrada da Galeria do Comércio vimos uma pastelaria em cuja fachada estavam desenhados o chapéu e a bengala do Carlitos. Eu era fã do Carlitos e bom apreciador de pastel de palmito. Não houve hesitação: entramos e lá comi um pastel de palmito acompanhado de uma coca-cola bem gelada, daquelas que fazem brotar lágrimas nos olhos quando a gente toma depressa.

Feito o lanche, seguimos até o seu João para cortarmos o cabelo e lá, naquela manhã de 1979, meus olhos de criança, que até então eram apenas testemunhas das maravilhas do mundo, travaram contato com uma grande tragédia que nunca mais abandonaria a minha memória.

Na barbearia, no meio de tantas revistas antigas, havia um número da revista Manchete, de fevereiro de 1974, inteiramente dedicado à cobertura jornalística do incêndio do Edifício Joelma. Apanhei aquela revista sem que meu pai percebesse e, enquanto ele cortava o cabelo, devorei cada uma das páginas da revista, repleta de fotos – enormes e coloridas - que apresentavam a tragédia em todos os seus ângulos, que documentavam toda a dor.

Naquela manhã, meus olhos de criança foram castigados por imagens de pessoas se jogando do alto do prédio, de pessoas desesperadas agonizando sobre o telhado do edifício em chamas, de uma multidão que se acotovelava nas calçadas implorando para que as vítimas não se atirassem, estendendo faixas no chão pedindo calma.

Meus olhos foram massacrados por fotos de religiosos ministrando a extrema-unção às vítimas deitadas sobre a calçada, fotos de corpos cobertos por sacos plásticos pretos, mulheres com os corpos cobertos por uma pomada - branca e espessa - sendo carregadas pelos policiais e bombeiros. Fotos avermelhadas mostrando o edifício tomado pelo fogo, escadas apoiadas nas janelas, pessoas nos banheiros pedindo socorro, balançando lenços e janelas cujos vidros se estilhaçavam por conta da temperatura superior a setecentos graus.

Naquela manhã de 1979, saí da barbearia diferente, como se as imagens da tragédia tivessem me apresentado o outro lado da vida, um lado para mim realmente desconhecido, feito de dor, pânico, violência e morte. Depois daquele sábado, meu mundo ficou claramente dividido entre a beleza, alegria e poesia dos filmes do Carlitos e a violência, o medo e a morte do incêndio do Joelma.

Hoje, 1º de fevereiro de 2008, faz exatamente 34 anos que o Edifício Joelma ardeu em chamas. Para os mais novos, conto aqui a história da tragédia, mesmo que me custe relembrar algo que causa tanta dor, mesmo que com isso eu volte a sentir no peito a violência que escandalizou meus olhos de menino e que machucou meu coração de criança, naquele sábado de 1979.

O Edifício Joelma era uma das maiores obras de arquitetura moderna da cidade de São Paulo. No dia 1º de fevereiro de 1974, um curto-circuito em um ar-condicionado provocou o incêndio que se espalhou por todo o edifício, vitimando várias pessoas (179 mortos e 300 feridos). Estavam no local cerca de 760 pessoas.

Às 8h50, um funcionário ouviu ruído de vidro rompendo, proveniente de um dos escritórios do 12º andar. Foi até lá para verificar e constatou que um aparelho de ar-condicionado estava queimando. Foi correndo até o quadro de luz daquele piso para desligar a energia; mas ao voltar encontrou fogo seguindo pela fiação exposta ao longo da parede.

As cortinas se incendiaram e o fogo começou a se propagar pelas placas combustíveis do forro. O funcionário correu para apanhar o extintor portátil, mas ao chegar não conseguiu mais adentrar a sala, devido à intensa fumaça. Subiu as escadas até o décimo terceiro andar, alertou os ocupantes e ao tentar voltar ao 12º pavimento, encontrou densa fumaça e muito calor. A partir daí o incêndio, sem controle algum, tomou todo o prédio.

Foram feitas várias corridas de elevadores enquanto a atmosfera permitiu e com isso foram salvas muitas pessoas. Uma ascensorista, na tentativa de salvar mais vidas, persistiu nas corridas de elevador mesmo após as condições ficarem muito ruins, e morreu no vigésimo andar.

Muitas pessoas foram retiradas das áreas de banheiros com auxílio das escadas mecânicas. As atitudes das vítimas foram variadas: muitas subiram ao telhado, outras ficaram nos andares se molhando com água das mangueiras. Infelizmente, quarenta morreram ao pular do alto do edifício para escapar do calor.

No telhado, grande parte se salvou ao abrigar-se sob as telhas de cimento amianto. Os que não fizeram isso morreram sob os efeitos do intenso calor e fumaça. Apesar de não recomendado, a maioria das 422 pessoas que se salvaram escaparam pelos elevadores que conseguiram fazer descidas expressas graças à habilidade dos ascensoristas e à demora de o sistema elétrico dos elevadores ser afetado pelas chamas.

Tudo isso aconteceu há exatos 34 anos, numa manhã de fevereiro, em São Paulo e o leitor deve estar se perguntando por que eu estou escrevendo sobre a tragédia do Joelma.

Honestamente, não sei lhes explicar os porquês que me levaram a escrever sobre o incêndio do Joelma. Talvez ainda seja uma expressão do meu trauma de infância causado pelas imagens da revista que folheei na barbearia do seu João.

Talvez seja a coincidência de hoje ser aniversário da tragédia, talvez seja tudo isso, mas – no fundo – ainda é a permanente perplexidade de assistir à fragilidade da vida humana e de perceber que, a qualquer momento, a gente pode ser vitimado por uma dessas ocorrências do destino.

Hoje, ao relembrar a tragédia, fico imaginando quantos jovens - como eu e você - tiveram suas vidas abreviadas por um acontecimento absolutamente inesperado. Fico imaginando os pensamentos de um jovem qualquer, com seus 18 ou 20 anos, pressentindo a morte, sem ter como escapar, e desejando estar nos braços de sua mãe e de sua namorada. Desejando tomar uma coca-cola pela última vez, querendo assistir ao seu time do coração, e não tendo mais tempo para nada, arrebatado pela morte que chegara cedo demais.

Conscientemente, não sei lhes explicar os porquês que me levaram a escrever sobre o incêndio do Joelma. Talvez ainda seja uma expressão do meu trauma de infância causado pela revista que folheei na barbearia do seu João, mas talvez seja uma forma de dizer a vocês, queridos amigos, que é preciso viver a vida a todo momento, que é preciso viver a vida intensamente.

Eu queria que essa minha história fizesse a gente sair da frente do computador pra ir beijar a testa da nossa mãe. Eu queria que essa minha história fizesse a gente levantar da cadeira para olhar o nosso colega do lado e lhe oferecer - sorrindo - um cafezinho. Fizesse a gente dar um bom-dia afetuoso pro cobrador do ônibus, pra moça do balcão da confeitaria, pra senhora da limpeza e pra criança que passa pelas ruas desfilando sua inocência, ainda intocada pela grande dor das coisas que não passam.

Eu queria que essa minha história pudesse ser uma forma de oração dedicada àqueles que perderam a vida, há exatos 34 anos, numa manhã de sexta-feira, em São Paulo. Numa manhã que arde na lembrança deste homem que, ainda menino, teve os olhos marcados pelas imagens que mostravam que a vida também é essa coisa dolorida que, honesta e conscientemente, eu não consigo explicar, nem entender.


Pensamos demasiadamente e
Sentimos muito pouco …
Necessitamos mais de humildade
Que de máquinas.
Mais de bondade e ternura
Que de inteligência.
Sem isso,
A vida se tornará violenta e
Tudo se perderá.
(Charles Chaplin)


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