Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

A Igreja dos dois Jesuses

02/01/2008


Segundo dia do Ano Novo. Barriga cheia e cabeça vazia: estado de espírito ideal para escrever uma coluninha sem grandes compromissos, uma coluninha para ocupar o amigo-leitor que, provavelmente, divide-se entre os arrependimentos cometidos à mesa por força da gula e as promessas de ser um novo homem - ou uma nova mulher - neste 2008 que há pouco raiou em nosso horizonte.

Largar o cigarro, pegar no estudo, perder peso, ganhar espaço, largar a esposa, pegar a vizinha, perder a sogra, ganhar status: tudo isso é válido, em nome da esperança de um ano repleto de felicidades.

E desejando a todos vocês muitas felicidades neste novo ano, ofereço a leitura da historinha que segue. Sendo lida nas linhas e nas entrelinhas pode render valiosos ensinamentos acerca da humildade, da união, do arrependimento e, sobretudo, da Fé...

O amigo certamente já ouviu falar na Santíssima Trindade, não é mesmo? Deus Pai, Filho e Espírito Santo, não tem erro, é de conhecimento geral. Também, pelo que sabemos, o Espírito Santo é representado pela Pomba Branca, o Filho é o Nosso Senhor Jesus Cristo e Deus Pai tem a face que nós Lhe atribuirmos. Há quem veja Deus Pai como pai, há quem imagine uma figura materna, seja lá como for, Deus é para nós um forte referencial e até mesmo suprema inspiração. Mas eu não quero me alongar muito, pois pouco conheço de Teologia.

Acredito em Deus, mas reconheço, envergonhado, que ando longe do ideal cristão. Tenho certeza de que se morresse hoje meu amanhã seria incerto e isso até explica o meu pavor de viajar de avião: eu não posso morrer de repente! Eu preciso de alguns dias de antecedência, pelo menos, para poder limpar minha barra com o Altíssimo. Mas não é sobre isso que eu quero falar – pelo menos não hoje. O que eu quero contar a vocês é uma história ocorrida há alguns anos numa paróquia de nome fictício, envolvendo carolas de nomes fictícios, protagonizando um enredo fictício, mas que, no fundo, poderia ter sido real. Deixo a dúvida na cabeça do leitor amigo.

Corria o ano de 1989 e todos eram felizes na Paróquia de São Tomé, onde oitenta crianças, divididas em duas turmas, freqüentavam as aulas de catecismo. Quarenta crianças de manhã, quarenta crianças à tarde.

As aulas da manhã eram comandadas pela Dona Maria do Socorro, cabendo as aulas da tarde à Dona Angélica e tudo corria muito bem na paróquia.

Como obrigação acessória às aulas de catecismo o Padre Orlando impôs, às duas turmas, a organização das missas rezadas por ele. Com isso, o padre queria unir a prática e a teoria o que, reconheçamos, era atitude bastante inteligente do nobre pároco.

É verdade que o padre não conseguiu, de pronto, seu intento, mas, depois de ameaçar as crianças com as altas chamas do inferno e outros males de vulto, obteve lá seu êxito.

A partir de então ficou definido que a turma da D. Angélica organizaria a missa de sábado à tarde, enquanto que os catequisandos da D. Maria do Socorro ficariam com a missa de domingo de manhã.

Esta divisão de tarefas se manteve por cinco semanas. Acontece que o Padre Orlando não estava gostando do desempenho das duas turmas e o que mais lhe doía era ter de aturar o péssimo desempenho duas vezes por final de semana.

Entretanto, façamos justiça às turmas e suas catequistas: eles bem que tentaram fazer uma missa bem bacana. Tudo bem que cometeram alguns deslizes, como da vez que cantaram “parabéns prá você” ao final de uma missa de sétimo dia, mas acontece. Está certo que houve também aquele incidente com o dinheiro recolhido durante a missa de domingo e que foi parar, não se sabe como, nos bolsos dos catequisandos e que foi chato ver o Padre Orlando revistando todos os alunos depois de os ter encostados, seminus, nas paredes da sacristia, mas isso também acontece. Agora, quanto ao sumiço do vinho da sacristia, nada ficou comprovado. O fato de quatro alunos terem cambaleado durante a missa e de terem cantado Iron Maiden em vez de Hosana Hey não prova o nexo-causal. Pode ter sido apenas distração.

O fato é que o padre resolveu unificar as turmas durante a missa e colocou-as para organizar juntas a missa de sábado à tarde. Foi justamente aí que os problemas, que já não eram poucos, aumentaram. Justamente por este ato de unificação que se deu a história inusitada.

Naquela paróquia, como em qualquer outra paróquia do mundo, havia apenas um altar e, por óbvio, havia apenas uma imagem de Jesus Cristo.

Porém, a partir da unificação das turmas na organização das missas da catequese, D. Angélica e D. Maria do Socorro começaram a se desentender.

D. Angélica queria cercar Jesus de rosas vermelhas; D. Maria do Socorro preferia lírios. D. Angélica queria pregar um cartaz com os dizeres: “Jesus, Rei do Planeta”, mas D. Maria do Socorro achava planeta muito pouco e queria escrever universo. D. Angélica queria que as crianças cantassem “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos, mas D. Maria do Socorro preferia canções do Padre Zezinho.

E como eram tantas as discussões, deu-se o inevitável cisma, ou melhor, deu-se a multiplicação das imagens de Jesus Cristo. Isso mesmo. A D. Angélica, cansada de dividir Jesus com a D. Maria do Socorro, arranjou uma segunda imagem de Cristo e botou no altar, do lado oposto à outra imagem.

Quando Padre Orlando soube daquilo quis abandonar a batina. Há quem diga que o segundo sumiço do vinho da sacristia se deveu ao porre que o pobre padre tomou naquela noite: puro desgosto.

E o tempo passava e nada de as catequistas se reconciliarem. Era assim que funcionava: a D. Angélica e sua turma ornamentavam o Jesus da direita, enquanto o Jesus da esquerda era enfeitado por D. Maria do Socorro e seus alunos.

Em pouco tempo a Paróquia que pertencia a São Tomé passou a ser conhecida como a Igreja dos Dois Jesuses, deu até no Jornal Nacional.

Diante do escândalo, a CNBB resolveu intervir, mas nada era capaz de reunificar os Jesuses. Até mesmo os paroquianos estavam aprovando a idéia. Um deles chegou a dizer: “O Jesus da direita é mais rápido de milagre, é pedir e pronto. O da esquerda, sei não, não inspira muita confiança, Deus que me perdoe, mas sabe como é esse pessoal de esquerda, né?”

Outros paroquianos já diziam o contrário: “O Jesus da esquerda é mais povão, a gente pede ele dá, a gente promete trazer flores, não traz, e fica tudo bem. Ele não liga para isso, Ele é povão e ponto final”.

Apesar dos protestos do Clero, e das ameaças de excomungar D. Angélica e D. Maria do Socorro e de não dar a primeira comunhão a nenhuma das crianças, a situação persistia: era um Jesus de cada lado do altar e o Padre Orlando no meio, sem saber para que lado ir.

Agora, os fiéis se dividiam entre esquerda e direita até na hora de sentar nos bancos da igreja e tinha até competição para saber qual metade punha mais dinheiro nas caixinhas de oferta. E a divisão persistia.

O Jesus da direita ganhou dos seus uma novena; os fiéis da esquerda responderam com uma trezena. Fizeram um manto de cetim para o Jesus da esquerda; os direitistas cobriram de linho importado o Jesus da direita. A turma da esquerda fazia, a da direita acontecia e as catequistas cada vez mais inimigas e a criançada no meio do fogo cruzado, numa verdadeira Guerra Santa. Até irmãos não se falavam mais por causa do cisma havido na Paróquia de São Tomé.

Até que um dia se ouviu um grande estrondo vindo da igreja. Houve pânico geral e todos correram para lá. Quando chegaram, depararam-se com o teto desabado e com um incêndio indômito que tinha sido provocado pelas velas deixadas acesas nos dois altares: um grande castigo!

Após os trabalhos de rescaldo, foi retirada da igreja a imagem de um só Jesus Cristo e não se podia saber ao certo se era a imagem da esquerda ou a imagem da direita. Nada sobrou daquele fogaréu todo. Somente a imagem daquele Jesus Cristo, todo chamuscado, mas, apesar de tudo, inteiro e único. De resto, tudo se acabou, se perdeu, se queimou.

Depois disso tudo, ninguém soube ao certo como o teto desabou. Houve quem falasse em trovão, em cupins, em raio, em ação do tempo, nunca se soube com precisão.

O que se soube, tempos depois, é que na Paróquia de São Tomé existe um Cristo todo chamuscado no meio do único altar e que todos podem ver para crer. Pode-se ver que a D. Angélica e a D. Maria do Socorro não param de pedir perdão ao Cristo e hoje são amigas inseparáveis.

Os catequisandos, depois de terem recebido a primeira comunhão, já não podem mais ser vistos por ali.

Quanto ao Padre Orlando, este sim está muito feliz. Conseguiu reunificar Jesus Cristo em seu altar, reuniu os fiéis, acabou com o cisma de sua igreja e se recuperou bem da queda que sofreu, com serrote e tudo, do telhado da paróquia naquele santo dia do incêndio.

Afinal, “Nunca é demais ajudarmos ao Deus que nos dá tudo sem pedir nada em troca”, repete sempre o nosso querido Padre Orlando que, de certa forma, também veio do céu para nos salvar.


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