Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Às vezes a coisa não baixa

30/11/2007


Às quintas-feiras, como sempre faço, saio da Secretaria pensando num tema para poder escrever a coluna. É um exercício difícil: às vezes, sobram temas; às vezes, eles nem sequer aparecem; mas o traço comum é que, seja na abundância ou na escassez, escrever é difícil demais.

Vinícius de Moraes nos revelou muito bem esse drama em “O exercício da crônica” onde, lá pelas tantas, consignou:

“Dias há em que, positivamente, a crônica 'não baixa'. O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração - e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que o diretor do jornal está provavelmente coçando a cabeça e dizendo a seus auxiliares: 'É... não há nada a fazer com Fulano...'. Aí então é que, se ele é cronista mesmo, ele se pega pela gola e diz: 'Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e divirta os leitores!'. E o negócio sai de qualquer maneira".

Diante da mesma agonia, Fernando Sabino – em sua maravilhosa, poética e humana "A última crônica" – relata:

"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: 'assim eu quereria o meu último poema'. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica".

Ontem, quinta-feira, saí da Secretaria pensando num tema para poder escrever a coluna. Exercício difícil: às vezes, sobram temas; às vezes, eles nem sequer aparecem; mas, na abundância ou na escassez, escrever é difícil demais. Pelo caminho, pensei em escrever sobre a saída do ídolo Alex Mineiro, porém tanta coisa já foi dita que o assunto me pareceu superado. Alex Mineiro – cracaço de bola e ídolo do Furacão da Baixada para todo sempre – tinha mesmo de sair da vida do Atlético para poder entrar na História do Rubro-Negro, com todos os méritos.

Alex Mineiro, vestindo o manto sagrado, fez o que para ele era possível e fez o que era impossível. Alex Mineiro fez por nós – atleticanos – coisas possíveis de serem descritas e impossíveis de se esquecer. Alex, você é eternidade, a exemplo de outros atleticanos que não morrem nunca, dentre os quais destaco o poeta Zinder Lins e a Majestade do Arco, Caju.

Pensei em escrever sobre a absurda tragédia ocorrida na Fonte Nova e que deve servir de alerta a todo país, recheado de praças esportivas sucateadas e que colocam em risco milhares de vidas, a cada rodada, ano após ano. Mas escrever sobre a tragédia da Fonte Nova me parece inútil, pois a gente sabe que no Brasil um evento como esse nunca é devidamente punido e, como prova, cito a tragédia que chocou o país na virada de 1988 para 1989.

"O país acordou no dia 1º de janeiro de 1989 diante de uma tragédia. Na noite anterior, 150 pessoas pretendiam assistir à queima de fogos do réveillon em Copacabana, a bordo do Bateau Mouche. Mas uma parte se afogou na Baía de Guanabara, dez minutos antes do início das explosões de cores no céu do Rio. Morreram 55 pessoas.

O Bateau Mouche zarpou às 21h15m do píer do restaurante Sol e Mar, na Praia de Botafogo. Afundou às 23h50m, a 700 metros da Praia Vermelha, na Urca. Entre os mortos, a atriz Yara Amaral e a mulher do ex-ministro Aníbal Teixeira.

Durante as investigações, descobriu-se que o Bateau Mouche era um iate particular (originalmente se chamava Boka Loka). Concluídas as apurações, soube-se que a reforma do barco, feita sem assistência técnica, incluiu a construção de uma laje de concreto, que servia como terraço da embarcação.
Segundo a perícia, a laje deslocou o centro de gravidade do barco e foi uma das principais causas do naufrágio, ao lado do excesso de passageiros e, neste caso, descobriu-se também que o barco não tinha a capacidade declarada pela Marinha. Também havia buracos no casco e as bombas funcionavam mal".

Os noves sócios do Bateau Mouche foram julgados na 12ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. O Juiz Jasmin Simões Costa, absolveu o proprietário da Itatiaia Turismo, os sócios e o mecânico da Bateau Mouche Rio Turismo Ltda., acusados de responsabilidade no naufrágio. Em sua sentença responsabilizou as autoridades "pela ineficiência em regulamentar, ordenar e fiscalizar essa espécie de atividade". Acatou a tese de defesa, afirmando que os réus não atuaram dolosa ou culposamente por não prever o naufrágio.
O julgamento fugiu à rotina do Tribunal Marítimo e entrou para a história da Justiça brasileira como mais um desses erros que a Justiça comete, coincidentemente, em benefício dos mais abastados. Lembram-se do Sérgio Naya? Pois é... deve ser só coincidência mesmo.

O processo continha vários laudos técnicos comprovando o péssimo estado de conservação do Bateau Mouche IV. O relatório demonstrava a falta de estabilidade da embarcação; o desempenho insatisfatório da bomba de esgotamento; não existiam instruções para o caso de acidente; várias vigias estavam abertas; o casco estava em mau estado; só havia 54 coletes salva-vidas, mas, no fim das contas, não houve as punições exemplares que a gente esperava, apenas umas poucas condenações financeiras que, em verdade, não recompuseram nada, até porque a vida – bem supremo e divino – não tem preço. Em meu pesado ceticismo – manto que recobre aqueles que enxergam a dura realidade de todo dia – afirmo que na Bahia não será diferente: a impunidade será a Lei, uma vez mais, nessa regra que, no Brasil, parece não ter exceção: aos ricos, tudo; aos pobres, os rigores – e os descasos – da Lei.

Até quando?

Já em casa, pego um café e me coloco diante do computador. Preciso escrever, mas a perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, todavia as palavras escorrem entre os dedos e qualquer inspiração parece escoar pelo ralo. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, e fracassei.

Sem grandes novidades para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta, tampouco escritor, e estou sem assunto. Pensei em escrever sobre tanta coisa, não consegui escrever, e, paradoxalmente, acabei escrevendo esta coluna, não sem antes ter me levantado, sentado, lavado as mãos, levantado de novo, chegado à janela, dado uma telefonada a um amigo, posto um CD para tocar, relido crônicas passadas em busca de inspiração - e nada! Dias há em que, positivamente, a crônica "não baixa".

No País de Drummond, Quintana, Vinícius, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Lima Barreto, José de Alencar e Valério Hoerner Júnior, o destino comigo foi cruel: eles - todos - dominam as penas; e eu - tolo - sou apenas Rafael.


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