Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Sempre haverá Erechim

27/11/2007


Dentre as muitas coisas que eu não entendo está o cinema. Os filmes me cansam e, honestamente, só gosto de comédias, documentários e filmes brasileiros. O resto eu acho um saco. Sempre preferi o Troféu Imprensa ao Oscar e, para mim, o maior nome da sétima arte é Charles Spencer Chaplin que, sem falar nada, disse tudo. E tenho dito.

Mas se eu não sei nada de cinema, por que então resolvi começar o texto assim? Aí é que está: pretendo dar à coluna de hoje um tom cinematográfico e, por isso, resolvi recorrer às metáforas lá do mundo de Fellini. Mais nada.

Legal. O caso é que, apesar de sempre ter me mantido meio longe das telonas, assisti aqui e acolá a alguns dos clássicos de Hollywood e de vez em quando algumas cenas brotam na minha cabeça como que em resposta a algo que eu esteja vendo ou vivendo em dado momento. E no último domingo aconteceu isso. Explico.

Em dezembro de 2004, o Atlético foi jogar em Erechim contra o Grêmio, num jogo que envolvia o Rubro-Negro – líder da competição – e o Grêmio a meio passo de ser rebaixado. Jogo para ser vencido facilmente pelo Atlético. Essa era a aposta geral e ninguém poderia supor que algo sairia errado.

Jogo tranqüilo. Atlético 1, 2, 3 a zero! Favas contadas, até que veio o pior: Grêmio 1, 2 e 3. Empate amargo que nos custou o bicampeonato brasileiro. Empate inacreditável, inaceitável, absurdo. Empate que nos tirou a taça, diante de olhos incrédulos que - quanto mais viam - menos entendiam. Pesadelo do qual muitos ainda não acordaram.

Naquela noite, não consegui dormir. Saí da cama e fui para a sala. Liguei a tevê e num desses canais a cabo estava passando “Casablanca”, filme estrelado por Humphrey Bogart (um sujeito com cara de tarado) e Ingrid Bergman (uma mulher tão bonita que justifica a cara de tarado do tal Bogart). Filme chato, muito chato. E eu lá assistindo a tudo por não conseguir dormir. Lá pelas tantas, desenrolou-se o final. Final triste, aliás. O amor entre o taradão e a bonitona não deu certo e o cara, olhando nos olhos dela e fazendo cara de malvado, mandou ver: “Haverá sempre Paris” – e daí teve fumaça, um avião decolou, subiram as letras e eu fiquei com aquela frase na cabeça como sinônimo de tristeza: “Haverá sempre Paris”.

Caminhando para a cama, repeti, de mim para mim: “Haverá sempre Erechim” e, com o corpo dolorido, deitei-me junto da minha namorada e tentei dormir as duas últimas horas daquela longa madrugada. Ela ainda me perguntou: “Está tudo bem?” e eu – com ares de Humphrey Bogart – respondi: “Não. Meu coração está doendo e vai doer por muito tempo. Haverá sempre Erechim”.

Acho que ela nunca entendeu aquela frase, aliás, acho que ela nunca me entendeu. Seja como for, aquela era a frase perfeita para expressar a minha dor: “Haverá sempre Erechim” – nunca saiu da minha cabeça e virou, para mim, sinônimo de tragédia, de castigo, de juízo final, de apocalipse, de fim de feira, de “Não tem mais nada o que fazer”.

Depois daquela tarde em Erechim, tivemos de agüentar os coxas e os paranistas –e outros tantos torcedores que existem por aí - a nos encher a paciência com a lembrança horrenda daquele jogo e, quando menos se esperava, eis que surgia um camarada desses para relembrar: “E o jogo de Erechim?” – como se com isso metesse o dedo em nossa chaga aberta e por ela fizesse escorrer a nossa alma ferida, gota a gota.

Nesses últimos três anos, foi assim: “E Erechim?”, “E aquele empate em Erechim?”, “E a tarde do Grêmio em Erechim?” – três anos ouvindo e vivendo essa tal Erechim que, para nós atleticanos, virou uma espécie de capital do inferno, metrópole das terras do além túmulo, megalópole dos domínios do Chifrudo, do Satanás, do Satã, do Cão, do Coisa Ruim, do Capeta, do Tinhoso, do Esquerdo, do Belzebu, do Malasartes, do Demo, do Maligno, do Sete-peles, do Primo do Onaireves, enfim, do Vermelhão.

Três anos a fio tendo o saco enchido a cada dia por coxas, paranistas e demais torcedores de outras agremiações, sempre preocupados com a vida alheia e alheios às suas próprias vidas. Era como se aquela tragédia fosse a coisa mais insólita já produzida pelo futebol desde a sua invenção pelos ingleses em mil oitocentos e fumaça.

Olhavam-nos como se fôssemos uns perdedores irremediáveis, uns predestinados ao infortúnio, uns párias da sociedade esportiva, uns azarados natos, vocacionais e hereditários. Uns incapazes de colher os louros e as glórias dos triunfos, uns bestalhões, uns desafortunados.

Por conta de Erechim, eles faziam piadas e se riam tanto que nem sequer percebiam a mediocridade de suas performances esportivas. Depois de 2004, veio 2005 e, até aqui, nenhum espanto, e os adversários, espantadíssimos, viam nosso Atlético avançar na Libertadores da América e isso não lhes parecia nada bom.

Esquecidos de suas próprias cores, vestiram-se com as cores de cada adversário que enfrentava o Atlético e deixaram de ser coxas e paranistas para serem todo time que jogasse contra o Furacão.

Foram Cerro, e perderam; foram Santos, e perderam; foram Chivas, e perderam; só ganharam quando foram São Paulo, quando voltaram a ser habitantes da Quinta Comarca de São Paulo, num retrocesso histórico típico daqueles que nasceram para viver subjugados, cujas almas não têm vontade própria, cujos corações não são mais do que reservatórios de ódio e de inveja.

Quando perdemos a Libertadores, houve foguetório na cidade; houve alvoroço na cidade; houve alegria na cidade; pois o Atlético parecia agora viver “uma noite em Erechim”; pois o Atlético parecia viver, uma vez mais, um pesadelo do qual não iria acordar tão cedo. Após a derrota, acendi um cigarro, fumei no escuro da área de serviço, contive uma lágrima que ameaçou rolar e a passos lentos fui deitar.

Caminhando para a cama, repeti, de mim para mim: “Haverá sempre Erechim” e, com o corpo dolorido, deitei-me junto da minha namorada e tentei dormir as duas últimas horas daquela longa madrugada. Ela ainda me perguntou: “Está tudo bem?” e eu – querendo estar morto – respondi: “Não. Meu coração está doendo e vai doer por muito tempo. Haverá sempre Erechim. Haverá sempre Erechim”.

Na noite escura, uma voz interior me dizia: “O tempo é o melhor remédio. O tempo cura tudo. Você vai ver”. E eu, com o corpo dolorido, encaixei-me nela como se assim a dor diminuísse, como se o raio que atravessava o meu corpo naquele instante pudesse ser absorvido pelo corpo dela, como se o corpo dela fosse o solo onde eu haveria de me enterrar e nunca mais sair às ruas e nunca mais ouvir a inevitável chateação dos inimigos. Adormeci. No outro dia, chateação. Durante três anos, chateação, mas o tempo cura tudo. E o tempo passou.

Nesses três anos, descobri que Erechim, mais do que uma referência àquela derrota do Atlético, é uma referência a toda e qualquer tragédia futebolística e pode acontecer com qualquer um.

Aprendi que Erechim pode ser o termo exato para descrever a grande dor representada pela perda de algo muito valioso, de algo muito certo, de algo que se desejava muito e que se sonhava muito. Pode ser a designação perfeita para a perda de algo muito necessário, de algo vital, de algo que não se podia perder, mas que se perdeu. E o tempo passou.

Em 2005, o Coritiba foi rebaixado. Os verdes viveram por dois longos anos sua Erechim. Outra Erechim para eles já se avizinha. Não perdem por esperar. É questão de tempo.

No último domingo, 25/11/07, foi a vez de os paranistas viverem a sua Erechim. Estádio cheio. Dois gols de vantagem para o time das vilas. Depois, a virada: 3 a 2 para o Peixe. O choro, a dor e a constatação: em 2008, segunda divisão! O choro, a dor e a constatação: Erechim, mais do que uma referência àquela derrota do Atlético em 2004, é uma referência a toda e qualquer tragédia futebolística e pode acontecer com qualquer um.

Erechim é o termo exato para descrever a grande dor representada pela perda de algo muito valioso, de algo muito certo, de algo que se desejava muito, que se sonhava muito, é a designação perfeita da perda de algo muito necessário, de algo vital, de algo que não se podia perder, mas que se perdeu. No último domingo, em plena Curitiba, o Paraná Clube viveu sua Erechim e ela vai doer por muito tempo. “Sempre haverá Erechim”!

Nos próximos dias, restará a vocês – paranistas – esperarem por um milagre que os faça permanecer na Série “A” e milagres acontecem, principalmente se vocês usarem – a seu favor - toda a fé e a energia que usaram para torcer contra o Atlético nesses últimos anos.

No entanto se o milagre não vier, se as coisas não sairem como vocês imaginavam, se houver no meio do caminho de vocês uma Erechim, lembrem-se das palavras do poeta Thiago de Mello:

“Com a dor alheia aprendi que o mundo não é só meu
Mas, sobretudo aprendi que mais do que simplesmente viver
O que na verdade importa, antes que a vida apodreça,
É trabalhar a mudança do que é preciso mudar
Cada um na sua vez, cada qual no seu lugar”.

E que cada um siga colhendo os frutos de seu trabalho e de sua mudança à medida de seu merecimento.

THE END

P.S.:
¹ Aos verdes, que andam por aí dizendo que nós atleticanos estamos com inveja da conquista deles na Série B, vai escrito: Vocês foram os maiores dentre os pequenos e, por isso, ganharam o direito de serem os menores dentre os grandes, em 2008. Em 2009, a busca de vocês por mais uma estrelinha prateada recomeça;

² Esta coluna vai dedicada ao amigo Gérson, do Queens Snooker Burguer Bar. Gérson, leitor assíduo, aquele abraço;

³ Kléber Pereira, aquele abraço! Estes últimos três somados àqueles quatro da decisão do Supercampeonato paranaense de 2002 (CAP 6 X 1 Paraná) perfazem sete - conta de mentiroso - mas para sua sorte, está tudo gravado (em fita magnética e na memória do povão que não te esquece).

E, FINALMENTE, OS DERRADEIROS ESCLARECIMENTOS:

ALGUM TEMPO DEPOIS DAQUELA TRISTE TARDE RUBRO-NEGRA EM ERECHIM, LIVREI-ME DE DUAS COISAS NOCIVAS E HORRÍVEIS QUE SÓ ME FIZERAM MAL: O CIGARRO E AQUELA MALDITA EX-NAMORADA.

HOJE, É TUDO FELICIDADE NA MINHA VIDA: MEUS PULMÕES SEM BRONQUITE E MEU CORAÇÃO COM A EDITH! E QUE DEUS PERMITA QUE SEJA ASSIM ETERNAMENTE.


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