Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

O Vampiro e a Polaquinha

10/11/2007


Meia-noite e treze: nunca antes, raramente depois. Os passos pelas pedras do calçamento da Saldanha Marinho denunciam a presença do Vampiro. Vou a seu encalço. Ele apressa o passo e eu adiro à furtiva fuga. Os oitenta e poucos anos do Vampiro logo arrefecerão o ritmo de sua passada: não irá longe, é questão de metros e eu o alcanço.

Ainda faltavam uns quatro metros quando o Vampiro, sem olhar para trás, me cumprimentou, em tom de censura e ameaça:

- Antes era Paulo que fazia versos e me seguia, e virou pedra. Agora é você, Rafael? – o Vampiro tem esse jeito estranho de dizer boa-noite. Quem não o conhece se assusta, na verdade até quem o conhece sente um certo frio na barriga.

Virando-se para mim, finalmente, pude retribuir-lhe o cumprimento:

- Mestre, boa-noite! Preciso muito falar com você. Muito! – e agora, face a face com o Vampiro, começava aquele diálogo enigmático, misterioso, cheio de charadas e ironias. Aquele diálogo que faz correr pela espinha o fio da lâmina de barbear.

Corre a lâmina pela carne, e não se pode sangrar. Sangrar diante do Vampiro é ousadia que pode levar um mortal a cumprir sua sina de morte bem antes do tempo. O Vampiro, quando fala, prega os olhos no meio da nossa testa e é preciso estar atento aos olhos e caninos dele, pois ao menor descuido o Vampiro pode atacar (ele manda e desmanda no vento, ralha com a chuva, castiga o raio, silencia o protesto do trovão, anda por Curitiba sem deixar rastro no chão, nas águas e nos caminhos que separam as covas).

Repeti, tentando reunir uma coragem que sempre me falta diante dele:

- Mestre, boa-noite! Preciso muito falar com você. Muito! – e dito isso, senti o olhar do Vampiro grudando na minha testa, serpente hipnotizando a presa, e o silvo natural dando lugar à voz, repentina e aparentemente humana:

- Você está corado, Rafael! Risinho debochado brotando no canto da boca. Cara de sem-vergonha. Algum problema? Aposto que tem mulher na jogada. A gente fala, fala e você não aprende. A eterna mania de acreditar no amor. Beijar da ponta do cabelo até a unha do pé. Cada pedacinho escondido do corpo. Afastar a coxa branquinha de arroz lavado em sete águas e se perder no abismo de grandes lábios de rosa. Perdeu-se outra vez, Rafael?

Reconheçamos que o Vampiro tem um modo bastante incomum de se comunicar. Poderia ter dito apenas “Puxa, Rafael, você está bem! Está namorando?”, mas, não. Prefere criar toda uma atmosfera, como se estendesse sua capa ao redor da gente pra depois poder nos puxar quando lhe parecer mais oportuno e levar nosso cadáver ao Cemitério de Elefantes. O Vampiro é todo mistério. Corre sempre na nossa espinha o fio da lâmina de barbear e ai daquele que sangrar, ai daquele.

- Vampiro, é o seguinte: estou com problemas lá na Furacao.com, site onde escrevo desde abril deste ano e que trata das coisas do nosso Atlético. Sabe qual é o site, né, Vampiro? Aquele que fala do Atlético, que foi repaginado há poucos dias, aquele que eu te passei o endereço num guardanapo, noite dessas, lá no Ao Distinto Cavalheiro. Lembra?

- O site onde escreve a Michele Toardik! Sei quem é – respondeu o Vampiro com um olhar que era um misto de encantamento e nostalgia e que não me causaria maior espanto se não tivesse sido seguido por um longo e inesperado suspiro.

- Você conhece a Michele Toardik, Vampiro? – tentei quebrar o transe no qual mergulhara o Vampiro, mas só depois de um minuto ele resolveu me responder, deixando-me ainda mais apreensivo.

- A Michele Toardik é a colunista polaquinha! Sei quem é. É por ela que acesso o site e fico irritado ao ver todas as outras caricaturas, inclusive a tua, Rafael, que é a mais feia. A Michele é a polaquinha: deve ter o joelho redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro... e eu tão sozinho!

- Você, sentindo falta de amor, Vampiro? – debochei, quase esquecido que estava diante do Vampiro de Curitiba, aquele que manda e desmanda no vento, ralha com a chuva, castiga o raio, silencia o protesto do trovão, anda por Curitiba sem deixar rastro no chão, nas águas e nos caminhos que separam os túmulos.

- Mas diga lá, Rafael, qual era mesmo o teu problema com o pessoal da Furacao.com?

- É assim: o Marçal, o Rogério e o Sérgio – diretores do site - me deram um ultimato. Ou escrevo uma coluna que preste, ou perco a coluna que eles, gentilmente, me cederam. Entendeu, Vampiro?

- Tá, entendi, mas o que é que eu tenho a ver com isso, Rafael?

- Negócio é o seguinte: resolvi revelar na coluna aquela história que você me contou, em 1995, a respeito de sua participação direta no gol contra do Berg, o gol que nos deu o título em 1990 em cima dos verdes. Lembra? Aquele gol onde o Odemilson cobrou o lateral para dentro da área deles e, sem que a gente rubro-negra tocasse na bola, os verdes se encarregaram de botá-la contra as próprias redes, dando-nos o título de 1990!

- Xi! Aí é pepino! Contei pra você na amizade, no coleguismo, coisa de vampiros, mas daí a revelar tudo publicamente é complicado, ainda mais agora que tem CPI rondando o mundo da bola. Sei não, Rafael, acho melhor deixar essa história do gol do Berg pra lá. Já creditaram ao moço o gol contra, eu é que não vou revelar a verdadeira autoria.

- Pô, Vampiro, mas aí eu perco a coluna de vez! Dá uma ajuda pra esse seu amigo. Deixa eu contar a história daquele gol, Vampiro – supliquei ajoelhado sobre as pedras da Saldanha Marinho, de mãos postas como se estivesse diante de um santo, e não diante de um vampiro.

- Rafael, você sabe que o coxa-branca é um ser sensível. Se eles souberem que por ali – na casa deles – o Vampiro já atuou com toda a sua força sobrenatural, eles nunca mais pisam no estádio, ou pior, é bem capaz de eles mandarem benzer cada centímetro de cimento e aí a coisa fica esquisita pro meu lado. Deixa pra lá essa história, Rafael.

- Então não posso dizer que você estava sentado nas sociais, entre o Jacob e o Vialle, e que desceu de lá pra sentar na linha lateral, perto de onde saiu o arremesso do Odemílson?

- Não, não pode!

- Não posso dizer, Vampiro, que depois de soprar forte a bola das mãos do lateral atleticano você foi pra dentro da área e, como um raio, entrou e saiu do corpo de cada atleta do time verde, cabeceando a bola até que chegasse às redes, marcando assim o gol que nos deu o título daquela inesquecível temporada de 1990?

- Não, não pode!

E diante da negativa absoluta do Vampiro, despedi-me dele e fui caminhando pela Saldanha Marinho, de cabeça baixa, resignado com o fato de perder minha coluna semanal na Furacao.com.

Já estávamos distantes uns cinco metros, quando o Vampiro me interpelou:

- Rafael, e essa sua cara de felicidade, tem mulher na jogada? Conta aí!

- Ah, Vampiro, essa minha cara de felicidade não é gratuita. Tem mulher na jogada e se chama Edith e, dentre tantas qualidades, ela tem o joelho redondinho de curva mais doce que o pêssego maduro. Ela é tão linda. Ela me faz feliz, Vampiro! E eu beijo a Edith da ponta do cabelo até a unha do pé, beijo cada pedacinho escondido do corpo dela. Ai, ai!

- Poxa, Rafael, você aí falando dela e eu sozinho, sem amor, sem namorada, largado no mundo, carente de amor!

- Pois é, sou feliz por ter a Edith, mas vou perder a minha coluninha na Furacao.com, por falta de história para contar. Eu tenho uma mulher para amar – e amo - mas não tenho onde escrever. Você tem onde escrever, mas não tem uma mulher para amar. É a vida, Vampiro, é a vida!

- Rafael, façamos um trato: eu deixo você publicar a verdadeira história do gol do Berg e você salva a sua coluna. Em troca, você me arranja – com o pessoal do site - o telefone e o e-mail da Michele Toardik, a colunista polaquinha! Afinal, é por ela que acesso o site e fico irritado ao ver todas as outras caricaturas, inclusive a tua, Rafael, que é a mais feia de todas. A Michele é a polaquinha que o Vampiro de Curitiba pediu a Deus! Aceita o trato, Rafael?

- Beleza, Vampiro! Negócio fechado!

E foi por causa desse encontro que tive com o Vampiro de Curitiba que vocês, queridos leitores, descobriram a verdadeira verdade sobre o gol do Berg, naquele mês de agosto, mês, aliás, sempre marcado pelas coisas do além, pelas coisas inexplicáveis.

Quanto a Michele Toardik, confesso que estou meio preocupado, pois, não sei se vocês notaram, faz quase dois meses que ela não escreve no site e, para piorar as coisas, recebi, hoje, um e-mail de mensagem enigmática e que adiante transcrevo:

"Rafael,

Esqueça toda aquela bobagem que lhe falei sobre, e contra, o amor. Perdi-me, Rafael!

Abraços do seu amigo - que anda rindo aquele risinho debochado de canto da boca, bem sem-vergonha!

Vampiro de Curitiba"

Dedico esta coluna a:

Dalton Trevisan - atleticano e imortal - por ter, dentre tantas coisas, encontrado (revelado) nossa Curitiba Perdida (ou boa parte dela);

Edith Aragão - minha Gatona - por ter, dentre tantas coisas, encontrado o Rafael Lemos perdido;

Michele Toardik, esteja ela onde estiver!


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