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Rafael Lemos
Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.
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Atlético: comoção da minha alma
28/09/2007
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Depois da grande vitória de domingo sobre o time das vilas, saí da Baixada, mas não voltei imediatamente para casa. Um misto de nostalgia, felicidade e angústia tomava conta de mim. Subi até a Iguaçu, quis seguir adiante, mas meus passos acabaram se desviando pela Coronel Dulcídio. Resignei-me: “Não discuto com o destino/ o que pintar eu assino” – Ah, Leminski, esta Curitiba sem você é uma pedreira!
Descendo a Coronel Dulcídio, eu ia atrás de um chope ali pelas bandas do que resolveram chamar de “baixo Batel”, talvez por influência da terminologia carioca “baixo Gávea”, “baixo Leblon”. Pura frescura de alguns metidos a besta que freqüentam a região. Bobagem dos socialites - vazios por dentro e com a cara cheia de botox – que fazem de tudo pra aparecer na Coluna do Bessa – gente boçal e sem sal – gente chata “à Bessa”, gente “bessal”. Ali é o Batel - nem baixo, nem alto – Batel, “intransitivo”, com suas ruas estreitas, engarrafadas e, para mim, impregnadas de saudade.
Pois bem. Descendo a Coronel Dulcídio, um misto de nostalgia, felicidade e angústia tomava conta de mim, estava a poucos passos de reencontrar uma parte valiosa do meu passado. A razão dizia que eu não deveria seguir em frente, mas era o coração que me guiava. Entre a Visconde de Guarapuava e a Avenida Batel (Benjamin Lins, para ser mais exato), há uma Coronel Dulcídio onde assistem meus melhores dias da infância. Em 1983, naquele trecho, havia uma escola, e um menino, e uma professora, e um avô, e um time de futebol. Explico.
Em meados de março de 1983, tinha me transferido do Colégio Estadual Lysímaco Ferreira da Costa para o Colégio Camões Júnior, que funcionava numa casa branca, antiga, na Coronel Dulcídio, no meio da quadra, entre a Visconde de Guarapuava e a Avenida Batel, onde hoje se encontra boa parte da edificação do supermercado Pão de Açúcar. Sim, amigos, a minha escola querida deu lugar a um supermercado!
A terra onde marquei dezenas de gols, na infância, deu lugar a um supermercado. O grande quintal da minha infância não existe mais. Em seu lugar, milhares de latas de ervilhas, vidros de palmitos, palhas de aço, pacotes de farinha e um cartaz onde se lê: Volte sempre! Eu voltei para ver a minha escola, e não vi mais que um supermercado! Por que o progresso dói tanto? Quem tem o direito de enterrar – ainda viva – a infância de um homem? Diante do velho endereço, fechei os olhos e sentindo no coração toda a energia que vinha daquele lugar, viajei no tempo, de volta a 1983.
Cheguei ao Colégio Camões Júnior, na segunda série do antigo primário, com deficiências enormes. Lembro que no meu primeiro dia de aula a turma estava estudando a tabuada do três, e eu nem sabia o que era tabuada! A piazada, em uníssono: 3 x 1 = 3, 3 x 2 = 6, 3 x 3 = 9, e eu mudo, segurando-me pra não chorar, sentindo-me noutro planeta, querendo voltar pra casa.
No final daquela tarde, quando o sinal soou, guardei o material e, além dele, estava disposto a levar uma sentença aos meus pais: não voltaria ao colégio no dia seguinte. Acho que a expressão do meu rosto ao guardar o material deixava isso claro, pois, sem que eu percebesse, a Tia Suzana chegou do meu lado, puxou uma cadeira e começou a conversar comigo. Perguntou de onde eu tinha vindo, perguntou sobre as matérias de que eu mais gostava e, como todas as respostas eram monossilábicas, arriscou perguntar para que time eu torcia.
Surpreso, mas reanimado com a pergunta que me parecia inusitada, respondi para ela que torcia pelo Atlético. Ela sorriu e disse que o marido dela torcia pelo Colorado. Perguntei-lhe para que time torcia e ela me confidenciou: Atlético, mas finjo torcer pelo Colorado para agradar o meu marido, para que ele não fique tão brabo. Ao descobrir a “traição” da Mestra, sorri e me lembro que a grande novidade que tinha a contar em casa, naquela noite, era o fato de a Professora torcer pelo Atlético, embora jurasse ao marido torcer pelo Colorado. Todo mundo riu!
No outro dia, voltei ao Colégio. A turma teve um teste surpresa a respeito dos municípios da Região Metropolitana de Curitiba. No centro da folha, o desenho com o contorno do mapa de Curitiba, em volta, os desenhos dos municípios da Região Metropolitana e um montão de setinhas saindo de cada um deles para que a gente pusesse os respectivos nomes. Grande desafio: nunca tinha ouvido falar em Região Metropolitana de Curitiba! Diante de mim, uma folha em branco; dentro da minha cabeça, deu branco. Entre entregar o teste sem respostas e tentar respondê-lo, preferi responder.
Caneta na mão – sim, naquela época as crianças de segunda série usavam caneta nos testes, não havia a frescura de hoje, não havia o “psicologismo barato” dessas pedagogas chatas de plantão e que só atrapalham o andamento das coisas dentro de uma escola. Pois bem, caneta na mão, fui respondendo ao teste, mas como não sabia nem um município sequer da Região Metropolitana, fui pescando na minha cabeça todos os nomes de times de futebol que eu conhecia e que representavam suas cidades.
Daí, o meu teste ficou assim: Curitiba, ao centro, e, ao lado dela, cidades como Cascavel, Pato Branco, Maringá, Londrina, Toledo e Paranavaí, além de Guaratuba que, mesmo não sendo uma cidade representada por um time de futebol, entrou na minha absurda lista, pois era lá que eu passava as férias em companhia dos meus avós, pais e irmãos. Respondi tudo, errei tudo, mas tentei.
Quando contei ao meu avô as respostas que apresentara ao teste, ele quase morreu de tanto rir e, entre uma risada e outra, ia me perguntando: “Finha, você escreveu que Pato Branco ficava na Região Metropolitana de Curitiba?” – eu confirmava e ele ria; “Finha, você escreveu que Maringá ficava na Região Metropolitana de Curitiba?” – eu balançava afirmativamente a cabeça e ele punha até a mão na barriga de tanto rir. De repente, estávamos rindo juntos, sem maldade, enquanto enxugávamos as lágrimas que brotavam, aos borbotões, de nossos olhos. Meu avô me chamava de “Finha”, uma corruptela, uma forma sincopada de “Rafinha”. Saudades, meu Deus!
Depois das boas risadas, meu avô me explicou, pacientemente, o que era uma Região Metropolitana e me disse que Curitiba tinha municípios ao seu redor e que formavam a Grande Curitiba, na época com um milhão de habitantes, número assustador no entender do meu avô: “Lembro da Curitiba de 40 mil habitantes!” – ele dizia cheio de espanto e nostalgia. Com ele eu aprendi que havia Colombo, Contenda, Mandirituba, Piraquara, Quatro Barras, dentre outros tantos municípios.
Meu avô era coxa-branca e, ainda que pareça paradoxal, com ele aprendi a amar o futebol e, via de conseqüência, amar o Clube Atlético Paranaense. Vivíamos grudados e ligados em tudo o que havia sobre futebol. Assistíamos juntos ao “Viva o Futebol”, programa que passava na TV Iguaçu Canal 4, na hora do almoço, e cujo apresentador era o fantástico Dirceu Graeser (depois virou “Viva a Bola”, sob o comando do Bóris). À noite, assistíamos ao “Dois Minutos com Munir Calluf” e, diariamente, ouvíamos os programas esportivos, além de lermos a Gazeta e a Tribuna.
Quando o Dirceu Graeser morreu, eu e meu avô ficamos tristes como se tivéssemos perdido alguém da família e a tristeza aumentava quando a gente ouvia o Dirceu cantando “O Pássaro”: “Por entre nuvens/Brancas, soltas/Quase ondas, quase o mar/Voa leve, ave livre/Ave livre a voar/ Sente a vida/ Sente o vento/ Vida leve/ Sonho bom” - Ah, Dirceu, Curitiba sem você desaprendeu a olhar o céu!
Durante 1983, meu avô me levava para a escola e depois ia me pegar. Todo fim de tarde ele me recebia das mãos da Tia Suzana e perguntava: “Professora, como ele está indo?” – “Bem, seu Félix, o Rafael tá indo muito bem!” – respondia a Mestra, sempre com um belo sorriso nos lábios, e, de fato, eu tinha melhorado muito desde aquele primeiro dia de aula e, no final do ano, acabaria ouvindo da Tia Suzana que, naquele ano, eu tinha sido o melhor aluno da sala. Quando ela disse isso, meu avô ficou emocionado, olhos marejados, lembro-me bem. Saudades.
Saudades também dos Atletibas que decidiram o paranaense de 83. Eu e meu avô em lados opostos, pela primeira vez. O Atlético atrás de um bicampeonato que não conquistava havia 53 anos; o time verde tentando recobrar a hegemonia estadual. A cidade respirava Atletiba e, por todos os lados, a conversa era uma só: a grande decisão. Haveria dois jogos no Couto Pereira, era dezembro de 1983. No primeiro jogo, dia 15 de dezembro, eu e meu avô estávamos em Guaratuba, ouvindo o clássico pela Atalaia. Nervos à flor da pele e vitória do Atlético por 1 a 0, gol do menino Joel.
Até o segundo jogo decisivo do domingo haveria todo tipo de nervosismo, de ansiedade, de sonhos, de orações e de companheirismo. No domingo, eu e meu avô – lado a lado, ainda que vestindo cores opostas. Tevê ligada, Canal 12, Atletiba na tela. No minuto anterior ao pontapé inicial, meu avô olhou pra mim e desejou boa sorte: “Finha, que vença o melhor!” – tomado pela emoção, engoli em seco e, com um fiozinho de voz, respondi: “Que vença o melhor, vô!”.
Quarenta mil pessoas no Couto Pereira, maioria de atleticanos. Jogo tenso, Atletiba valendo título. No primeiro tempo, o Atlético se propôs a jogar com o regulamento, que lhe garantia o direito do empate. Apesar da postura defensiva do Rubro-Negro, o time verde pouco se arriscou no ataque.
No segundo tempo, tudo mudou. Aos 18 minutos, o volante Jorge Luís recebeu a bola na ponta-esquerda e cruzou alto. O menino Joel, dono da camisa 9, antecipou-se ao zagueiro e cabeceou forte no canto direito do veterano Jairo: Atlético 1 a 0. Couto Pereira tingido de vermelho e preto.
Aos 30 minutos, o time verde, com gol de Elísio aproveitando rebote do Rafael depois de um porretaço de falta do zagueiro Vavá, empatou. Passado o susto, os gritos de “bicampeão!” passaram a dominar o estádio. Num maravilhoso espetáculo, a torcida “Guerrilheiros da Baixada” transformou o campo do adversário em um autêntico Caldeirão Vermelho e Preto. Depois de 53 anos, o Atlético era novamente bicampeão paranaense e, melhor, era bicampeão em cima dos verdes, dentro do estádio verde, com todos os méritos!
Quando o juiz apitou o fim do clássico, abracei o meu avô, comecei a chorar e a gritar “bicampeão!”, enquanto ele, com a paciência e a doçura que só quem ama sabe ter, afagava os meus cabelos, enxugava o meu rosto com a ponta da camisa e dizia “parabéns”, por conta da conquista do meu Atlético. Na segunda-feira de manhã, fomos a uma banca ali perto da Saldanha Marinho e compramos um exemplar da “Tribuna do Paraná”, com a cobertura completa do título do Atlético. 1983, saudades, talvez o melhor ano da minha vida!
Depois da grande vitória de domingo sobre o time das vilas, saí da Baixada, mas não voltei imediatamente para casa. Um misto de nostalgia, felicidade e angústia tomava conta de mim. Subi até a Iguaçu, quis seguir adiante, mas meus passos acabaram se desviando pela Coronel Dulcídio. Diante de um supermercado, lembrei-me da velha escola, da Tia Suzana, da Fernanda (minha primeira namorada, uma loirinha linda que estudava na minha sala), lembrei-me do Atlético e lembrei-me do meu avô.
Hoje, meu avô está no céu; a Tia Suzana e a Fernanda devem estar em alguma Curitiba oculta, pois meus olhos já cansaram de procurar por elas nesses 24 anos, em vão; a velha escola ainda existe em minha lembrança e quando fecho os olhos me vejo menino, correndo pelo campinho, marcando gols decisivos, beijando a camisa do Atlético, sonhando ser o menino Joel.
E o Atlético, que fez o menino Finha chorar abraçado ao corpo forte do seu avô, faz, hoje, este homem chorar, em frente à tela do computador, atado a tantas alegrias do passado, abraçado a tantos feitos do presente, de braços abertos para as glórias que virão. Ah, Atlético, obrigado por ter dado razão à vida deste menino que vai morrer (feliz) do coração de tanto amor que sente por você!
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