Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Amar é o que vale

21/09/2007


Colégio Paranaense Marista, 1990, Ensino Médio, 1ºB, sala dos vagabundos, salvo raras e louváveis exceções. Luciana Patrícia Eickhoff era uma linda e loira exceção. Eu era um vagabundo amplo, geral e irrestrito: ia para a aula só para jogar truco, falar de futebol, olhar a bela Luciana Patrícia e escrever versos para ela, utilizando todos os espaços em branco das contracapas dos livros de Física, Química, Matemática e Biologia – matérias que julgava inúteis e pelas quais não tinha o menor interesse.

Meus cadernos também eram pura matéria-prima para os versos dedicados à Luciana Patrícia. Colégio Paranaense Marista, 1990, Ensino Médio, 1ºB, sala dos vagabundos, salvo raras e louváveis exceções, eu não era exceção: “Sou vagabundo, eu confesso, da turma de 1990...”. Daqui mando o meu abraço para os bons amigos da época: Luís Gustavo Marquetti Vasco, Felipe Romeiro Taveiros, André Mascarello, Ricardo Cubas, Mauro e Márcio Sotille França, Ferlim, Harlen Sill, Polaco e o resto da tropa (Meus bons amigos onde estão? Notícias de todos quero saber...).

Pois bem. Ia para a aula, como lhes disse, por pura obrigação, para jogar truco, falar de futebol, olhar a bela Luciana Patrícia e escrever versos para ela (versos que, pessoalmente, nunca tive coragem de entregar). Numa certa aula de Física, o professor – acho que se chamava Marcel Larsen, Lamers, sei lá, isso não tem a menor importância, pois o cara era um arrogante, um metido a besta - estava falando sobre MRV que, se eu não estiver enganado, significa Movimento Retilíneo Uniforme, coisa que serve para muitas coisas, todas por mim desconhecidas, graças a Deus.

Estava lá o cidadão falando sobre isso aí e eu olhando pra Luciana Patrícia, cheio de inspiração. Já tinha rabiscado uns cinco versos, quando o cara resolveu me encher o saco: “Escrevendo poemas durante a explicação. Não tem vergonha?” – vociferou o aludido (e alucinado) Fessor de Física, ao que respondi: “Não!” – e continuei escrevendo os meus versos. A turma inteira riu, o cara ficou vermelho de ódio e me olhou como se dissesse: “Você não perde por esperar”.

Nem fiz por maldade ou deboche, mas, na minha eterna sinceridade, nunca me dei conta de que às vezes podia ser mal interpretado. E fui. Olhem só o azar: o Fessor era paranista, a exemplo do Fessor Miranda, e era fanático, quase histérico, também a exemplo do Fessor Miranda. Eu, sempre desastrado, comumente ia para o Colégio com a camisa do Atlético por baixo da camisa azul do uniforme e, quando sentia calor, tirava a camisa azul e ficava com a camisa do Atlético durante as aulas. Não fazia por mal, mas fazia.

Numa dessas, acabei assistindo à aula de Física – era sobre um tal lançamento oblíquo – trajando a minha sempre linda camisa do Atlético. Ah, pra quê: o Fessor se sentiu ofendido. Deu lá sua explicação sobre a matéria e passou exercícios para fazermos em trios. Lá pelas tantas, chegou perto do trio composto por este que vos escreve, mais Felipe e Luís Gustavo Vasco e disparou: “Não sei como alguém pode torcer por um time como o Atlético!” – e olha a arrogância do cara ao perguntar isso, pois, naquela época, o Paraná tinha 6 meses de vida e o Atlético uma linda e vitoriosa história de 66 anos!

Tudo bem, o cara tava querendo me provocar mesmo, normal, fiz que não era comigo. Só que aí ele voltou à carga e me perguntou: “Rafael, como é que alguém pode torcer por um time como o Atlético?” – ah, naquele momento, o sangue do turcão aqui (sírio, para ser mais exato) ferveu.

Olhei para a cara do elemento - cujo epíteto era Salsicha, pois tinha uma barbinha meio ruiva e era magro feito um bambu – e respondi: “Professor, da mesma forma que é inútil explicar pra mim – que sou ignorante em Física - o que seja MRV, MRUV, Lançamento Oblíquo e coisas do mesmo naipe, é inútil explicar para um paranista o que seja futebol, o que seja paixão, o que seja o Clube Atlético Paranaense. Eu sou ignorante em Física e nas Ciências Exatas em geral. O senhor – que é paranista, que torce por um time que tem 6 meses de vida - é ignorante nas coisas da bola e assim sempre será. Um paranista não pode mesmo entender a grandeza de um time como o Atlético e toda paixão que existe em torno dele. Vocês nunca serão nada diante do Atlético. Nada!”. Bom, inútil lhes dizer que dali para a Diretoria foi o famoso “um pulo”. Fui suspenso por dois dias. Não perdi nada.

Pouco tempo depois do ocorrido, chegou o final do ano letivo. Eu precisava tirar 5,6 para passar na recuperação anual de Física. Tirei 5,4 e o Salsicha me deixou por 2 décimos. Fui para o Conselho de Classe. Ao saber que iria para o Conselho, resignei-me: “Vou reprovar!” até porque o Fessor de Biologia, Drulla Brandão, outro xarope, coxa-branca, frise-se, já tinha deixado claro que seu voto viria no sentido de me reprovar. Explico: certa feita, numa aula de Biologia, daquelas de causar sono até em criança hiperativa, o homem falava sobre Complexo de Golgi e eu nem aí, ou melhor, eu lá escrevendo versos pra Luciana Patrícia. Isso deve ter sido lá por outubro de 1990, época em que a dupla Atletiba disputava a encardida Série B.

O Atlético, campeão paranaense, fazia uma campanha fantástica no brasileirão; o coxa, uma campanha das mais desastradas. Pois bem. Nessa aula de Biologia, eu nem aí pra teoria do cara, até que ele me interpelou: “Seu Rafael, o que é Complexo de Golgi?” – com o saco cheio, respondi: “Complexo de Golgi eu não sei o que é. Só sei o que é Complexo de Gol!” – daí o Fessor – ao melhor estilo Dedé Santana, o eterno Escada do Didi Mocó – perguntou: “E o que é Complexo de Gol, seu Rafael?” – sentenciei: “Complexo de Gol é o mal que afeta times pequenos como o coxa. O coxa, de tão inoperante, não consegue fazer gol nem no Operário de Ponta Grossa, pela Série B!”. Bom, inútil lhes dizer que dali para a Diretoria foi o famoso “um pulo”. Fui suspenso por dois dias. Não perdi nada, mas até hoje não sei a diferença entre gimnosperma e angiosperma e talvez por isso eu ande tão preocupado, com essa sensação de vazio existencial.

E esse Fessor de Biologia também não tinha digerido muito bem a minha presença em sala, na segunda-feira posterior à conquista do título de 90, trajando camisa e boné do Atlético, principalmente porque eu tinha sob a carteira um belo exemplar da Tribuna do Paraná, com todas as fotos e detalhes da grande conquista e, de cinco em cinco minutos, abria pra mostrar pra galera, cheio de orgulho. Enfim: em 1990, reconheço, fiz e aconteci em nome da paixão pelo Atlético Paranaense. Em 1990, defendi o Atlético contra tudo e contra todos, mesmo arriscando ser reprovado por conta das discussões havidas com os citados Fessores Salsicha e Drulla Brandão. Eu podia até reprovar, mas ninguém diminuiria o meu Atlético.

Bom, no final das contas, o saldo de 1990 ficou assim: passei no Conselho de Classe, apesar dos votos contrários da dupla paratiba (Salsicha e Drulla Brandão); o Atlético subiu para a Série A e só não foi campeão da Série-B de 90 por conta de uma bobagem protagonizada pelo estabanado goleiro Toinho, no jogo contra o Sport, no Pinheirão (o cara saiu pra cortar uma bola fora da área, na lateral do campo, perdeu a dividida, entregou o gol pro Sport e fez lambança); e – melhor de tudo, crianças – o coxa caiu para a Série-C, conhecida também como terceira divisão e só não disputou a terceirona em 1991 por uma manobra da CBF que acabou extinguindo a Série-C para 1991.

Acho que foram aquelas discussões em defesa do Atlético que me mostraram o caminho a seguir: amar o Atlético por tudo que ele representa; difundir o Atlético por todos os cantos que passo; defender o Atlético contra tudo e contra todos, mesmo que isso possa me obrigar a fazer grandes sacrifícios (Rubro-Negro é quem tem raça) e eu sou Rubro-Negro, incondicionalmente.

Por isso, domingo lutarei mais um assalto ao lado do Atlético e contra o inimigo tricolor. Lutarei o bom combate – esteja claro – no grito, na raça, na emoção. Domingo, serei atleticano como nunca, ou como sempre, ou como era em 1990, ano em que o Atlético bateu o coxa e o Paraná como se fosse um rolo compressor avançando sobre uma montanha de ossos. Cutucaram a onça com vara curta. Domingo é dia de a onça beber água. E a sede vai ser do tamanho de 25 mil gargantas secas de tanto vibrar.

Domingo, o Paraná vai pagar pelo que fez e pelo que não fez, quem viver verá. E aí, o Fessor Salsicha vai entender, definitivamente, o porquê do nosso amor pelo Atlético. Vai entender por que a gente torce por um time como o Atlético. Ah, e antes que eu me esqueça: anos depois, peguei um daqueles livros onde eu escrevia poemas para a Luciana Patrícia. Encontrei lá um dos poemas, achei bonito – até que pra um guri de 14, 15 anos não era tão mau - e resolvi colocar num site de poemas que havia na Internet. Postei sem a menor pretensão, mas postei. Aos curiosos, transcrevo o poema, in verbis:

Os tímidos entenderão por certo
Os versos da minha poesia errante
Pois só nós sabemos estar perto
Da musa que está sempre tão distante.

Quantas noites eu perdi tentando
Ganhar dela ao menos um carinho
Mas ela ia embora, evaporando,
E eu ficava mais uma vez sozinho.

Tantas vezes eu voltei para casa
Abandonado e triste assim como um menino
Me agarrando a uma esperança rasa
De tê-la junto a mim como um destino.

E tantas vezes fiquei esperando
Saber de você qualquer notícia
Que acabei enfim me acostumando
A ser só, por você, Patrícia.


(Mas quem disse que amor platônico é amor impossível? Amor platônico é ela vindo e eu invisível).

Em outubro de 2004, a Luciana Patrícia encontrou o poema na Internet e me mandou um e-mail emocionante agradecendo a homenagem: apenas isso, nada mais. Mas eu, romântico incorrigível, senti-me recompensado ao constatar o quanto havia agido certo desprezando tantas lições inúteis e empregando o meu tempo fazendo versos pra ela.

Nesta vida, o amor é o que vale. Seja o amor por um time, seja o amor por uma mulher, seja o amor por uma causa. E o que nesta vida não for amor, talvez seja Complexo de Golgi, ou MRV, ou Gimnosperma, ou uma dessas coisas que a gente aprende para esquecer e que, em verdade, não servem mesmo para nada. Nesta vida, o amor é o que vale e o que nesta vida não for amor talvez seja coxa, talvez seja Paraná Clube, ou uma dessas coisas que não servem para nada.


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