Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Pelo Atlético, nenhuma luta é vã

09/09/2007


Em 1982, eu tinha seis, quase sete anos de idade. Ano de Copa do Mundo, a Copa mais fascinante que meus olhos já viram, embora a campeã tivesse sido a Itália, responsável pela eliminação do Brasil. O Brasil contava com um timaço: Leandro, Júnior, Falcão, Zico, Sócrates, Éder, dentre outros cracaços.

Em 1982, eu estava na primeira série do antigo primário, matriculado no Colégio Estadual Lysímaco Ferreira da Costa, e freqüentava as aulas pela manhã. O nosso uniforme era calça de tergal azul-marinho, camisa branca de botões, meias e sapatos pretos.

Os sapatos deveriam estar sempre muito bem engraxados, a calça com vinco bem feito, a camisa para dentro da calça – e de preferência com o colarinho bem alvo – e apenas os casacos e japonas poderiam ficar a critério dos pais, desde que não fossem muito chamativos (ainda vivíamos - ou sobrevivíamos – dias de ditadura militar).

Meu pai me levava para a escola. Saíamos de casa, religiosamente, às seis e cinqüenta da manhã, andávamos quatro quadras e, antes das sete, eu passava pelo portão do colégio. Como chegava cedo, podia conversar com os colegas e, invariavelmente, o papo era futebol.

No turno da manhã, funcionavam o primário, o ginásio, o magistério e o ensino médio (científico, conforme a denominação da época). Todos os alunos ficavam juntos - na entrada, no recreio e na saída – e sempre houve um convívio pacífico, sem a violência que testemunhamos hoje, infelizmente.

Há poucos dias, passei em frente ao Lysímaco – eram quase sete horas da noite – e constatei, horrorizado, que dezenas de alunos estavam diante do colégio, em grupos, conversando, namorando, fumando – muitos nem sequer têm idade para comprar cigarros, e fumam – e a cena não me causou boa impressão.

Agradeci a Deus o fato de ter dado a mim um pai e uma mãe sempre presentes e pedi a Deus que protegesse aqueles jovens – eles não sabem o que fazem, não avaliam o mal que os cerca, não percebem a importância do estudo em suas vidas, não se deram conta da importância de suas vidas. Senti saudades do velho Colégio. Nem sempre o passar dos anos traz o progresso desejado.

E passando por ali, lembrei-me dos velhos companheiros – de todas as idades – que dividiam comigo os dias de 1982, no Lysímaco. As discussões futebolísticas eram acaloradas e havia três grupos distintos – atleticanos, coxas e bocas-negras (torcedores do Colorado, um dos clubes que deu origem ao atual Paraná).

Lembro-me que tinha um sujeito de barba – torcedor boca-negra, provavelmente aluno do ensino médio, ou talvez até fosse professor, não sei ao certo – que adorava conversar com a gente, principalmente para ver a reação sempre passional do grupo atleticano, onde eu era o membro mais exaltado, apesar dos meus seis anos de idade. Naquelas discussões acaloradas, e quase sempre respeitosas, formulei as primeiras frases em defesa do Atlético. Saudades.

Fiz a ressalva “discussões acaloradas e quase sempre respeitosas”, pois teve uma vez que a coisa acabou em pancadaria. Tinha um guri, torcedor do Colorado, que resolveu fazer uma paródia do Hino do Atlético, só para me provocar. O guri, depois de passar uns quinze minutos escrevendo no caderno, arrancou a folha, guardou-a no bolso da calça e esperou o sinal do recreio com cara de quem ia aprontar alguma.

Naquela quarta-feira, Atlético e Colorado se enfrentariam no Couto Pereira e os ânimos já estavam quentes desde a chegada ao Colégio. Por todos os cantos a gente ouvia as discussões envolvendo o jogo e as provocações iam surgindo. De repente, o guri boca-negra apareceu na minha frente, com sua folha onde estava a paródia, e cantou: “Atlético, Atlético, conhecemos seu fedor...”.

Ah, senhores, não houve tempo para dúvida: assim que o guri terminou o primeiro verso, embolei-me com ele na porrada e até hoje não se sabe como eram os demais versos da odiosa paródia. Nossos sapatos – que deveriam estar sempre muito bem engraxados – perderam os cadarços; as calças – que deveriam estar vincadas – rasgaram-se na altura dos joelhos; as camisas – de colarinhos bem alvos – ficaram vermelhas, nem tanto pelo sangue dos contendores, mas, principalmente, por conta da cera que era fartamente aplicada às rubras lajotas que revestiam o piso dos corredores.

Após a pancadaria, fomos parar no gabinete da enérgica Diretora – Dona Glaura, se não me engano. Lá, o Inspetor que nos conduziu narrou os fatos “Eles brigaram por causa de futebol” e nos qualificou “O gordinho é o atleticano; o do nariz sangrando é o boca-negra”.

Denúncia oferecida, partimos para a ampla defesa: “Foi ele que começou!”, “Que nada, foi ele” – e, reconheçamos, quando a gente tem seis anos, é o máximo que se pode produzir em sede de contestação, ainda mais diante de uma Diretora enérgica e poderosa. Até que nos saímos bem, o duro foi ouvir a bronca, de uns vinte minutos, da Dona Glaura.

Lembro-me que, em certo ponto do seu extenso discurso, ela disse: “Brigar por causa de futebol? Onde já se viu?” – como se dissesse, em resumo: “Brigar por algo sem importância? Tenham a santa paciência!”. E depois suspendeu a gente por dois dias (não sem antes encher a gente de tarefas a serem feitas nos dois dias de gancho).

Saímos do Gabinete cabisbaixos. O guri boca-negra, provavelmente, querendo esconder o nariz ensangüentado. Eu, pensativo, seguia à procura de palavras que pudessem explicar a Dona Glaura que os socos que dera – e que recebera – não tinham sido imotivados, mas, eram, sim, ações legítimas em defesa do meu Atlético, do meu amor, da minha vida (mas nada eu disse e nada mais me foi perguntado).

Resignado, cumpri a pena domiciliar, sem lançar mão de recurso, e ainda sofri um agravamento da pena por conta de uma decisão do meu pai: “Não vai ouvir hoje o jogo do Atlético, pois brigou na escola”. Chorei uma noite inteira com a cara enfiada no travesseiro e só na manhã seguinte pude saber o resultado do jogo. No retorno às aulas, eu e o boca-negra tivemos de fazer as pazes diante da Diretora e assim encerramos o conflito. Tornamo-nos amigos.

Na sessão em que selamos a paz, o boca-negra disse, para felicidade da Diretora: “Brigar por causa de futebol é uma bobagem. Eu não brigo mais”. Na minha vez, disse apenas: “Agora somos amigos”. E como nada mais eu disse, nem me foi perguntado, saí do Gabinete de cabeça erguida, consciente que o meu destino seria defender o Atlético, meu time, meu amor, minha vida, minha razão de existir.

Há dois meses, reencontrei o velho amigo. Relembramos o episódio da pancadaria, entre risos. Falamos sobre a vida em geral – escolhas profissionais, mulheres, família, dinheiro, falta de dinheiro, perdas e ganhos. Depois de uns dez minutos, despedimo-nos e fomos caminhando em direções opostas.

Já havíamos dado dois passos, quando parei e me dirigi uma vez mais ao amigo, agora em tom provocativo:

- E aí, boca-negra, continua brigando pelo seu Paraná Clube? - ao que ele me respondeu, com ares de superioridade:

- Não sou torcedor do Paraná Clube. Torci na infância pelo Colorado, mas depois da fusão, parei de acompanhar o futebol e nunca mais torci por time nenhum. Futebol é uma bobagem, Rafael! Mas e você, ainda brigando pelo seu Atlético? – questionou-me o amigo em tom irônico, ao que retorqui, com redobrada e fina ironia:

- Continuo brigando – agora com palavras - pelo meu Atlético, afinal, o Atlético é o meu time de infância, é a minha vida, é o meu amor, é a minha razão de existir e continua vivo há 83 anos. O Atlético continua vivo. Continua vivo!

E segui meu caminho de cabeça erguida, enquanto o velho amigo – cabisbaixo – parecia ser, de novo, aquele menino que escondia o nariz ensangüentado. E segui de fronte alta o meu caminho, enquanto o amigo parecia levar consigo um cemitério na cabeça.


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