Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

A grande vitória

10/08/2007


Na minha infância, o grande time era o Flamengo. Aliás, grande com justa razão. O Flamengo - do final da década de 70, início dos anos 80 - era uma máquina de jogar bola e não havia guri que não fosse, ao menos, fã do Rubro-Negro da Gávea (podiam até não torcer pelo Flamengo, mas eram fãs e gostavam de assistir aos jogos por conta do belíssimo futebol do quadro carioca).

No fim de 1981, o Flamengo decidiu o Mundial, em Tóquio, contra o Liverpool. Apesar de o jogo ter sido realizado à meia-noite, horário de Brasília, e de eu ter apenas 6 anos de idade, fiquei ligado na transmissão. O Flamengo atuou com: Raul, Leandro, Marinho, Mozer, Júnior, Andrade, Tita, Adílio, Nunes, Zico e Lico. Lembro-me que foi um passeio do time brasileiro que impôs ao clube inglês um incontestável 3 a 0.

O Flamengo sagrava-se campeão mundial e devolvia ao Brasil a honra de ver um clube seu ocupando o topo do Mundo (o último a dar uma satisfação dessas tinha sido o Super Santos, de Pelé, o maior time de futebol de todos os tempos, sem sombra de dúvidas, bicampeão mundial em 62/63).

Após a conquista do título, a Globo passou o domingo inteiro inserindo vinhetas com o hino do Flamengo e reprisando os gols, a festa e o Zico – cabeludo – erguendo a taça, sob o sol tímido do Japão. Lembro-me que o Flamengo atuou com sua camisa número dois: branca, com detalhes rubro-negros nos ombros e, naquela ocasião, com mangas compridas, igual a que foi utilizada contra nós, na última quarta-feira, na Arena (hoje, a camisa do título compõe a coleção retrô, uma grande sacada do marketing esportivo e dos fornecedores de material).

Em resumo: o Flamengo era um time de sonhos, de craques, de semideuses e todo garoto era fã do Zico, do Júnior, do Leandro, do Raul e do restante da companhia. Eu não fugi à regra e também admirava aqueles caras que jogavam por música, talvez no ritmo do pandeiro do sambista e lateral Júnior (“voa, canarinho, voa!”. Quem já passou dos 30 lembra bem dessa musiquinha).

Em 1982 teve Copa do Mundo e o Brasil botou em campo um selecionado espetacular, inesquecível, comandado pelas mãos do Mestre Telê. O Flamengo cedeu à Seleção seus grandes nomes: Zico, Júnior e Leandro. Timaço aquele do Telê. Time tão bom que nem precisou ser campeão para se eternizar na memória do torcedor comum.

A exemplo da Hungria de 1954 e da Holanda de 1974, a Seleção de 1982 entrou para a História das Copas como uma espécie de campeã moral, deixando a sensação de quem nem sempre vence o melhor (a Itália campeã de 1982 tinha um futebolzinho insosso, incapaz de emocionar, incapaz de ficar eternizado na memória. A Itália campeã em 2006 repetiu a dose, erguendo uma taça sem brilho, mostrando ao Mundo um futebolzinho anêmico).

Passada a Copa, os clubes retomaram seus destinos e o Flamengo prosseguia encantando a todos e ia atropelando quantos quisessem cruzar o seu caminho. Foi campeão brasileiro em 1982 numa campanha marcada pela força da massa rubro-negra, principalmente nos jogos que tinham por palco o Maracanã (diversas vezes o público pagante ultrapassou os 100 mil torcedores). Jogar contra o Fla no Maraca lotado era experiência traumática para qualquer adversário, por mais categorizado que pudesse ser.

Em 1982, enquanto o Flamengo fazia suas vítimas por todos os lados, o Atlético punha em campo um timaço que também encantava a todos e que, em gramados paranaenses, não conhecia adversário. Roberto Costa, Ariovaldo, Jair Gonçalves, Bianchi, Sérgio Moura, Jorge Luís, Detti, Lino, Nivaldo, Capitão, Washington, Assis e Ivair fizeram misérias no paranaense de 1982 e, para coroar tanto êxito, levantaram o caneco numa campanha em que o ataque marcou 70 gols. Time mágico que arrebatou milhares de corações, inclusive o meu, que me rendi àquelas feras que pareciam jogar por música, que pareciam heróis, semideuses, que pareciam flutuar pelo gramado, embora passassem como um rolo compressor sobre as equipes que apareciam pela frente.

Na minha cabeça, em 1982, havia duas equipes que jogavam o futebol dos sonhos: Flamengo e Atlético; mas no meu coração só havia um time: o Atlético, o meu Atlético, ou o Atlético das feras capitaneadas por Assis e Washington. Mas na minha cabeça, Raul, Zico, Júnior e Leandro eram muito melhores do que o Roberto Costa, o Assis e o Washington. Os caras do Flamengo eram jogadores de Seleção, de Copa do Mundo, enquanto os nossos eram aqui de Curitiba e isso me fazia acreditar que o Flamengo – campeão do Mundo – era muito mais forte que o Atlético, era mais forte que todo mundo e a gente era forte pra bater o Coritiba, ou o Colorado, e só.

Daí veio 1983. Campeonato brasileiro. O Flamengo ia degolando os adversários e o Atlético, num início tímido, ia passando de fase sem muito brilho, sem despertar grandes aspirações. Acontece que, nessa sua caminhada, o Atlético alcançou as quartas-de-final e teria pela frente o todo poderoso São Paulo, time que também havia cedido boas peças à Seleção de 1982. Logo que o confronto foi definido, o país decretou que o vencedor seria o time do Morumbi e até aqui em Curitiba a gente, no fundo, achava que o Atlético já tinha ido longe demais.

Para espanto geral – ou de muitos – nós despachamos o tricolor paulista com duas vitórias maiúsculas. Agora, enfrentaríamos, nas semifinais, o temido Flamengo. O primeiro jogo foi no Rio e eles venceram a gente por 3 a 0, com a ajuda de uma arbitragem nada imparcial. No jogo de volta, teríamos de vencê-los por diferença de 3 gols. A massa atleticana se mobilizou em torno do time. Curitiba foi tomada pelo vermelho e preto do Atlético. Tudo era Atlético, não havia assunto capaz de se impor à magnífica semifinal.

No dia do jogo, o Couto Pereira foi tomado por 67 mil torcedores e pelo menos outros 20 mil tiveram de voltar pra casa por falta de ingressos. Quando o Atlético entrou em campo, naquele domingo de maio de 1983, a torcida explodiu numa festa nunca vista em estádios paranaenses até então. Todas as emoções humanas foram vividas naqueles 90 minutos de jogo. Estavam, frente a frente, os dois melhores times do Brasil e, quiçá, do Mundo. Diante do Atlético estava o Flamengo, com seus craques e com a vantagem de 3 gols; diante do Flamengo estava o Atlético convertido numa força sobrenatural, empurrado por uma torcida em transe, sobre o gramado onde não encontrara adversários no ano anterior.

Naquela tarde de domingo, o Atlético jogou a melhor partida de sua existência e impôs ao melhor time do Mundo uma derrota de 2 a 0, incapaz de levar nosso Rubro-Negro à final, é verdade, mas incapaz de ser esquecida. Quando o árbitro apitou o fim do jogo, a massa atleticana cantou o Hino do Atlético e, ao chegar ao refrão, explodiu: “Atlético, Atlético, conhecemos teu valor, e a camisa Rubro-Negra só se veste por amor!” – e aplaudiu o time por mais de 15 minutos, reconhecendo naqueles homens – antes anônimos – a grandeza dos heróis, dos craques, dos semideuses.

Desde aquele domingo, jogar contra o Flamengo – pra mim - é reviver aquela semifinal de 1983. Desde aquele domingo, jogar contra o Flamengo é – pra mim – um grande acontecimento, como se para sempre estivessem frente a frente os dois melhores times do Mundo, prestes a decidir uma vaga para a final de um brasileiro, prestes a decidir, no campo, qual deles – afinal de contas – é mais Rubro-Negro.

Jogar contra o Flamengo, e vencê-lo, é – pra mim – uma forma de vingança, uma forma de mostrar ao Mundo que, a exemplo da Hungria de 1954 e da Holanda de 1974, o Atlético do brasileirão de 1983 entrou para a História do maior certame de clubes do planeta como uma espécie de campeão moral, deixando a sensação de quem nem sempre vence o melhor. Vencer o Flamengo – pra mim – é uma forma de resgatar na memória as atuações de um Atlético de sonhos, que bateu o melhor time do Mundo, com inteira Justiça e autoridade.

Assim, o triunfo da última quarta-feira não foi uma vitória qualquer, mas, sim, uma grande vitória, posto que conseguida diante do Flamengo, o time que, ao nos enfrentar em 1983, ostentando ainda a glória de um recente título Mundial, foi batido em Curitiba, dando-nos a oportunidade de reconhecer – finalmente – a grandeza do Atlético e sua vocação aos títulos e aos triunfos. Foi num Atlético e Flamengo em 1983 que finalmente a massa atleticana descobriu que quando o Atlético se une nada e ninguém é capaz de cruzar o seu caminho.

Foi num Atlético e Flamengo, em 1983, que finalmente a massa atleticana descobriu que quando o Atlético se une nada e ninguém é capaz de cruzar o seu caminho. Nem mesmo um time campeão do Mundo, recheado de craques, como era o Flamengo do Zico & Cia., vencido – insofismavelmente – pelos semideuses que envergavam um manto vermelho e preto, com listras horizontais, onde estavam gravadas 3 letras: CAP, entrelaçadas, na altura do peito e gravadas, para sempre, dentro dos nossos corações.

Ah, Atlético, só a gente sabe por que é louco por você...


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