Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Recordar é viver

03/08/2007


Curitiba, agosto de 1990. Quem é atleticano e viveu essa época sabe muito bem do que é que eu vou falar. Quem é atleticano, e não viveu aquele agosto, ficará com uma ponta de inveja da gente – felizardos que trazemos na memória as imagens daqueles dias gloriosos.

O ano de 1990 nasceu incerto para as coisas do Atlético. No ano anterior, o time havia sido rebaixado no brasileirão e o nosso rival, apesar de também ter sido rebaixado, ainda conservava boa parte do time campeão paranaense de 1989 e queria o bicampeonato estadual.

É desnecessário lhes dizer que o Atlético lutava – uma vez mais – contra tudo e contra todos. A imprensa enaltecia o time verde, principalmente por julgar que eles tinham sido vítimas da CBF e da canetada do Ricardo Teixeira (foram rebaixados por um Ato Administrativo da Presidência da CBF por não terem acatado uma ordem de jogar em Juiz de Fora contra o Santos). Pois bem, a imprensa estava alvoroçada e queria reerguer o time verde a qualquer custo.

Para o Atlético sobravam os cantos de página, as contracapas dos cadernos de esportes e outras miudezas. Os verdes eram donos da mídia. Para os que hoje acham o Petraglia arrogante e dono do Mundo, aconselho que procurem conhecer as biografias e proezas dos ultra arrogantes: Bayard Osna (já falecido), Jacob Mehl e João Carlos Vialle, mandatários verdes daquela época e que eram a própria personificação da empáfia e da soberba (e da incapacidade gerencial posto que condenaram o time verde à penúria e à segunda divisão de onde só sairiam em 95 para depois voltar em 2005).

Então o quadro no início de 1990 era esse: os verdes tentando o bi e nós, a duras penas, tentando montar um time para botar em campo e honrar a camisa Rubro-Negra. Tempos difíceis. Jogávamos no Pinheirão, a Baixada estava completamente abandonada – apenas a sede administrativa funcionava no acanhado prédio da Buenos Aires 1270, no mais, havia apenas as ruínas do que um dia fora o estádio Joaquim Américo e mato por todos os lados, inclusive com pés de mamona de uns três metros.

Marolla, Valdir, Leonardo, Heraldo, Odemílson, Cacau, Gilberto Costa, André, Osvaldo, Carlinhos, Dirceu, Rizza e Serginho foram os atletas que entraram em campo na segunda partida da decisão do título de 90, mas até o finado técnico Zé Duarte chegar a essa escalação, muita coisa interessante aconteceu e vale a pena a gente relembrar.

Muitos atletas já estavam no Rubro-Negro há tempos, como eram os casos do Marolla, Odemílson e Carlinhos. Outros vieram se juntar a nós vindos de times menores, a exemplo do Valdir que no ano anterior tinha despontado envergando a camisa da extinta Platinense. Gilberto Costa veio de São Paulo e logo foi tratado como medalhão, mercenário, pirata atrás do ouro atleticano. Leonardo, Heraldo e Fião eram defensores raçudos, assim como era raçudo o Cacau.

André conferia ao time um certo refinamento. Osvaldo, Rizza e Serginho seriam fundamentais. Outros jogadores também contribuíram com o time naquele estadual, dentre eles o veterano Assis – que nos anos 80 formara o Casal 20 com o Washington – e o guri Paulo Rink que, anos depois formaria outra dupla inesquecível ao lado do baiano Oséas.

Mas o cracaço do time era Carlinhos, O Sabiá. Carlinhos era um ponta franzino, canelas finas e um fôlego interminável. Tinha jogado muito tempo no Cruzeiro-MG e por lá encantara a todos. No Atlético já tinha sido campeão em 1988. Era o cracaço do time, e não era para ter sido assim porque, no início do campeonato de 90, o grande nome do elenco era o atacante Kita, contratado a peso de ouro e que vinha precedido de uma fama das grandes. A Diretoria – capitaneada pelo Presidente Farinhaque – tinha contratado o Kita para incendiar a torcida e motivá-la na busca pelo caneco de 1990.

Ocorre que o futebol, metáfora da vida e do mundo, acabaria por pregar uma boa peça na gente atleticana. Kita, que seria o impiedoso goleador, acabou se desentendendo com os altos comandos do Atlético fato que o fez saltar do barco bem antes do previsto. A saída do Kita abriria caminho para um certo atacante chamado Dirceu que, naquele mesmo ano, seria rebatizado de Dirceu Schilatti em homenagem a um jogador da seleção italiana chamado Totó Schilatti e que, saindo do completo e absoluto anonimato, brilhara com a camisa da Itália na Copa do Mundo de 90.

Amigos, pra encurtar a história: quando surgiu o Dirceu, somado ao Carlinhos, ao Gilberto Costa e ao restante da Companhia, o Atlético pegou fogo! O Presidente Farinhaque ia aos microfones e falava a língua do povão. Dirceu metia gols nos adversários e dava pra ver na cara dele a vontade com que ele cumpria sua missão. Durante o campeonato, o Atlético ficou sem estádio pra jogar, pois o Pinheirão fora fechado para obras. Mandamos jogos na Vila Capanema e no Couto Pereira. Éramos chamados de sem-terra, sem-estádio, éramos humilhados por todos e nada era capaz de diminuir a nossa energia.

No feriado de primeiro de maio de 1990, o time verde meteu 3 a 0 na gente, dentro do Couto Pereira, num jogo onde eles quebraram o nosso meia Heriberto, e ficou por isso mesmo. Aquela derrota teve enorme repercussão na cidade. No dia seguinte, todos debocharam da nossa cara e aquilo causou em nós uma raiva das grandes e uma vontade desgraçada de devolver a humilhação que nos fora imposta. Os coxas esfregavam na nossa cara o 3 a 0 e a gente queimava de ódio. A gente só pensava em vingança: aquilo não ficaria assim. A torcida, de orgulho ferido, se mobilizava por toda parte. Na nossa vida só tinha lugar para o Atlético.

Todo atleticano estava mobilizado por um ideal: conquistar o paranaense-90 e restabelecer o orgulho Rubro-Negro. E a coisa foi dando certo. Batíamos os adversário dentro e fora de Curitiba. Na cabeça, a vontade de passar por cima de todos e dar uma resposta pros verdes, mostrar-lhes quem mandava no futebol paranaense. O campeonato foi afunilando até chegar às semifinais. Num cruzamento, Atlético e Operário de Ponta Grossa; noutro, Paratiba.

Travamos duas batalhas contra o Fantasma: perdemos em Ponta Grossa por 2 a 1 e vencemos na Vila Capanema por 1 a 0, gol de pênalti assinalado pelo Serginho Paulista, lá pelos 29 do segundo tempo. Quando saiu o gol, a Vila quase foi ao chão. O povão atleticano pulava, chorava, urrava nas dependências do Durival de Britto: éramos uns loucos, uns alucinados, uns apaixonados. Agora era a vez de detonar o Coxa. Ah, era chegada a hora pela qual esperávamos há 3 meses, desde o confronto de primeiro de maio.

A decisão seria jogada em duas partidas, ambas no Couto Pereira, nos dias 1º e 5 de agosto de 1990, quarta-feira e domingo. Assim se fez. No primeiro jogo, Couto Pereira com cerca de 15.000 torcedores. Um frio de matar e a sensação térmica era ainda menor por conta da garoa que caía sobre a cidade. Naquela noite, eles comemoravam os 5 anos do título brasileiro: estavam em festa e acreditavam que nos bateriam com facilidade, acreditavam que o bicampeonato estadual viria ao natural. Só esqueceram que do outro lado havia o Clube Atlético Paranaense e uma torcida maluca que só pensava em levantar o caneco.

O Atletiba de primeiro de agosto começou e a massa atleticana logo apresentou o cartão de visita: “Atirei o pau nos Coxas...” – assim iniciou o coro ainda tímido. Aos poucos, as atenções foram sendo despertadas: “... e mandei tomar no cu” – cara, de lado a lado tinha gente que não acreditava no que estava ouvindo. O coro continuava: “Coxarada, filha da puta, chupa rola e dá o cu” – alvoroço geral – até que veio o refrão matador: “Hey, Coxa, vai tomar no cu!”: pronto, estava tudo dito, a decisão passava a ter a temperatura de um caldeirão preparado para ir pelos ares a qualquer momento.

Os caras fizeram 1a 0, e o Atlético não arrefeceu. Nada desanimava o time, nada abatia a nossa torcida. Um a zero pra eles e era a gente que fazia barulho nas arquibancadas. Eles não arriscavam comemorar por antecipação. Porém, lá pelos quarenta e quatro minutos do segundo tempo, com a vitória quase assegurada, os verdes resolveram se soltar e começaram os gritos de “bicampeão, bicampeão!” – e a gente ainda lá, cheio de esperança, apesar das provocações esmeraldinas.

Daí, quando muitos já davam como certa a vitória coxa, o Atlético partiu para o ataque e, num lance pela esquerda, obrigou o goleiro coxa a tocar a bola fora da área. Isso devia ser lá pelos 46 do segundo tempo. O goleiro saiu, tocou a bola fora da área e o Tito Rodrigues marcou a falta, um típico escanteio de mangas curtas. Todo mundo que estava no estádio parou de respirar, momentos de ansiedade, coração na mão. O experiente Gilberto Costa pegou a bola e ajeitou com carinho, quase na risca da linha de fundo, de repente, a bola foi alçada pra dentro da área e uma flecha negra castigou a bola – de cabeça – pras redes do Coxa. O estádio explodiu. Só dava pra ver o Dirceu correndo na nossa direção, rodando os braços freneticamente, e atrás dele o time do Atlético, como se fosse um exército. Estava decretado o empate: 1 a 1, e que viesse domingo!

E o domingo veio! 5 de agosto de 1990, última partida da decisão. 55.000 torcedores no Couto Pereira. Estádio explodindo de gente, nervos à flor da pele. Precisávamos de outro empate para sermos campeões. Logo de cara, aos 5 minutos, Dirceu – O Predestinado – abriu o marcador. O Couto quase caiu. Nós explodimos numa festa poucas vezes vista dentro de um estádio de futebol. O Atlético estava a caminho do título e da redenção, mas não há caminhos fáceis na vida do Atlético: os verdes viraram ainda no primeiro tempo – 2 a 1.

Segundo tempo, jogo tenso, duro, nervoso, aguerrido, um Atletiba com todos os ingredientes que sempre o caracterizaram. O tempo passava, e nada! O título seguia indefinido, ainda que estivesse cada vez mais perto dos verdes. O tempo escorria entre os dedos. Os dedos se cruzavam em prece. A prece e a pressa eram nossas, a fé e o merecimento também eram e, por isso, obtivemos o grande milagre: “Odemílson cobrou lateral na ponta-esquerda, a zaga do Coritiba fez lambança e Berg, pressionado por Dirceu, tentou consertar, cabeceando para trás e buscando mandar a bola para escanteio. No entanto, a bola, caprichosamente, encobriu Gérson e foi morrer no fundo das redes do Coxa, para explosão da nação atleticana presente no Couto Pereira”.

Eram 26 minutos do segundo tempo, quando o placar apontou 2 a 2, finalmente, de uma vez por todas, para todo sempre! Atlético Campeão Paranaense de 1990, na final mais eletrizante da história do futebol do Paraná. Após a conquista, as ruas de Curitiba foram inundadas pelo mar vermelho e preto e a euforia era tanta que essa energia se manteve em alta até o final do ano, quando voltamos à Serie A do brasileirão (e o engraçado foi ver o Coxa – ao final da Série B do brasileirão 90, ser rebaixado à Série C, a 3ª Divisão do Nacional).

Depois da nossa conquista, a Diretoria coxa – em atitude ridícula e mesquinha – quis embaçar o brilho de nosso triunfo argumentando que o regulamento fora alterado ou desrespeitado. Pura bobagem. Em junho de 1991, o STJD encerrou a questão ao confirmar o título do Atlético – de fato e de direito, com todos os méritos, com todas as honras, com toda Justiça!

Recordar é viver: no próximo domingo, dia 05 de agosto, faz 17 anos que a gente levantou o caneco, na casa deles, na cara deles, contra tudo e contra todos. No próximo domingo, dia 05 de agosto, faz 17 anos que a gente levantou o caneco, dentro das quatro linhas, dentro da casa deles, na cara dos arrogantes que cantavam vitória antes do tempo, e perderam. Domingo, faz 17 anos da nossa conquista. E a alegria é tanta que parece que foi ontem, parece que está sendo agora, parece que vai durar para sempre: e vai!

Atlético Campeão Paranaense de 1990, no campo e na Justiça, de fato e de direito, no inferno e no Céu. E ao Coxa, restou o choro dos perdedores e uma mágoa que nunca fechou e nunca vai fechar. Quem é atleticano e viveu 1990 sabe muito bem o que é ser feliz. Aos coxas, restaram - daquela época - duas belas canções que faço questão de registrar: “Recordar é viver, Dirceu acabou com você” e “Hey, Coxa, vai tomar no cu!” e elas ainda ecoam pelas paredes do estádio verde, pelos corações e mentes de milhares de torcedores e pela cidade que foi inundada pelo mar vermelho e preto, naquele inesquecível agosto de 1990, em Curitiba.


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