Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

De pai para filho

17/07/2007


Hoje, meu filho teria sete anos. De longe, ninguém vê as dores de um homem, os sonhos de um homem, suas dúvidas, seus amores e sua fé. O coração de um homem guarda segredos que doem demais e que deveriam ser chorados em público até que toda dor passasse, mas um homem não chora. Um homem sofre calado: olhos baixos vagando pela rua para que, de longe, ninguém veja suas dores, seus sonhos, suas dúvidas, seus amores e sua fé. Assim tenho feito, mas não hoje. Hoje, meu filho teria sete anos.

Novembro de 98, festa na empresa em que eu trabalhava. Advogado recém formado, 23 anos, um monte de gurias legais à minha volta e aquela vontade de viver tudo o que podia e ainda mais. Dentre elas, estava a Cláudia: a gente se encontrou. De início, nada tão sério, apenas umas saídas com o pessoal do trabalho: idas à cervejaria do Luxemburgo que ficava ali no Estação. O pessoal gostava de bater papo e tomar cerveja, à vontade, na confraria aberta no meio da mesa, novidade na Curitiba do final da década de 90.

Muita conversa, muito chope, alguns encontros e não demorou para o pessoal da empresa grudar a Cláudia em mim, ou eu a ela, pouco importava, passamos a viver colados. Em fevereiro de 99 – dia 05, aliás – começou o namoro. Havia entre nós uma afinidade imensa, havia amor, havia paixão, em quantidades muito maiores a tudo o que eu tinha vivido até então. Fevereiro de 99: eu e a Cláudia começávamos a viver um sonho.

Na metade de julho de 99 veio a grande notícia: ela estava grávida de quatro semanas. Recebi a boa-nova pelo telefone e, antes de ir ao encontro dela, passei no Stuart para tomar uma generosa dose de uísque em companhia do meu amigo Marcelo. Aliás, o Marcelo foi o primeiro a me cumprimentar e, dentre as palavras desconexas que falamos naquele final de tarde, ouvi “Aí, Rafael, é mais um atleticano no mundo” – e sorrindo ao Marcelo e a todos que estavam em volta eu dizia que sim, que seria mais um atleticano no mundo, talvez o maior dentre eles, certamente o maior na minha vida e na vida da Cláudia. Felicidade! Por que Deus não permitiu que minha vida tivesse acabado ali? Hoje, meu filho teria sete anos.

A gravidez foi se desenvolvendo. Em outubro, soubemos que seria um menino (mais um atleticano vindo ao mundo, confirmando o vaticínio do Marcelo. Aliás, o Marcelo ia ser o padrinho, estava tudo certo, desde aquele dia no Stuart onde juntos comemoramos a gravidez da Cláudia a goles de uísque).

Quando a barriga da Cláudia ganhou forma definitivamente, passei a me comunicar com o bebê. Éramos duas crianças: ele lá dentro em desenvolvimento; eu, do lado de fora, em estado de encantamento. Íamos crescendo, a cada dia, em nosso mundo novo: eu, no mundo dos pais; ele a caminho do mundo geral, com tudo que nele existe de belo e de profano. Entre nós, a Cláudia e sua barriga (e sua paciência – a paciência que só as mães conseguem ter). Através da barriga da Cláudia eu conversava com o meu guri.

E nas conversas pelas quais me aventurava, tantas vezes lhe falei do amor que eu sentia por ele e pelo mundo geral que agora estava à espera de sua chegada. Falar de amor é falar de vida, de esperança, de coisas simples, gratuitas, e que são acessíveis às mãos, aos sorrisos e ao toque de todos que se deixam aquecer por essa chama que brota no peito e ilumina tudo. Falava de um amor simples, feito de coisas singelas como o pão caseiro que meu avô fazia e deixava esfriando em cima do fogão enquanto o aroma tomava conta de tudo enchendo a boca da gente de água.

Falava que no mundo simples, havia um pedaço de mundo chamado Curitiba no qual havia uma rua feita de pedras pretas e brancas que, lado a lado, construíam um caminho por onde passavam, ombro a ombro, pessoas pretas e brancas. Que nesse pedaço de mundo chamado Curitiba, as pessoas que andavam juntas só se separavam quando um tal de Atletiba vinha colocar a todos ou no lado vermelho e preto ou no lado verde e branco. A ele, nessa história, caberia o lado vermelho e preto, e isso eu tinha deixado claro nas longas conversas que travamos enquanto a Cláudia muitas vezes dormia.

Ao meu filho, contei todas as histórias rubro-negras que eu sabia. Contei-lhe dos títulos, dos triunfos, da torcida e de tudo o que ele ainda veria e viveria depois de chegar a tal vermelha e preta Curitiba, pedaço do mundo em que haveria de habitar, ombro a ombro com as pessoas pretas e brancas; sobre a cidade que lhe acolheria os passos na rua feita de pedras pretas e brancas que, juntas, deveriam ser o seu destino: teria sete anos, hoje, o meu menino. Por que Deus não permitiu que minha vida tivesse acabado ali?

No dia 21 de dezembro de 99, quando o Atlético conquistou a Seletiva para a Libertadores da América, minha alegria era tanta que coloquei uma das caixas de som perto da barriga da Cláudia para que ele ouvisse o belo hino: “Rubro-Negro é quem tem raça/E não teme a própria morte”.

Poucos dias depois, durante a passagem de ano, ao ouvir o espocar dos fogos, coloquei-me diante da barriga da Cláudia e disse a ele: “Guri, vai se acostumando com esse barulho, pois – daqui para frente – será sinônimo de Atlético!” – felicidade, esperança, sonho, vida, sorte!

Metade de janeiro, noite quente. A Cláudia deitou se queixando de dores, fiquei nervoso. Ela me disse que não era nada, logo ia passar. Na sala, fui atrás da caderneta onde anotávamos os telefones importantes. Enquanto folheava à procura do telefone do doutor Maurício, ouvi um grito de dor. Corri para o quarto. Uma hemorragia violentíssima empalidecia o rosto da Cláudia à medida em que tingia o lençol de vermelho.

Partimos às pressas ao Victor do Amaral, ali na Iguaçu, mas nada pôde ser feito. No corredor, o doutor Maurício tentava me consolar: “Guri, vai se acostumando com essa dor, pois ela vai te acompanhar todos os dias. Será no teu peito uma chaga, um corte!” – desilusão, tristeza, impotência, injustiça, morte! Por que Deus não salvou o meu menino? Por que permitiu que eu continuasse vivendo? Hoje, meu filho teria sete anos! Meu Deus, por quê?

Eu que iria mostrar para ele todas as coisas do mundo, eu que iria ensiná-lo todas as coisas do Atlético. Eu que tinha sonhado em levá-lo no colo na Arena para que ouvisse o espocar dos fogos, eu que tinha feito tantos planos para o meu guri atleticano. Por quê, meu Deus, por quê? Voltando a casa, agora vazia, entrei no quarto para apanhar algumas roupas da Cláudia e levar ao hospital. Os primeiros raios do dia me permitiram ver o enorme lençol manchado de vermelho a contrastar com o negro que ainda dominava o ambiente. Diante dos meus olhos e do meu peito rasgado, como a desafiar a minha fé, um pavilhão Rubro-Negro enlutado: “O coração atleticano/Estará sempre voltado/Para os feitos do presente/E as glórias do passado”.

Lá fora, a vida geral seguia seu rumo, indiferente à minha dor, à dor da Cláudia. Meses depois, eu e a Cláudia nos separamos. A vida geral nunca pára “A gente morre é para provar que viveu” – escreveu Guimarães Rosa. Aliás, escreveu também: “As pessoas não morrem, ficam encantadas” e é por isso, meu filho, que você viveu e ainda vive em mim, encantado, em forma de sonho, e guia os meus passos, renova minha fé e reaviva em mim a esperança de um dia entrar na Arena da Baixada, com teu irmãozinho no colo, para mostrar a ele todas as coisas que eu tinha guardado para nós, para você.

Hoje, meu filho teria sete anos. Hoje, vazio de sua presença, acho no fundo que minha vida está parada e que nada acontece. Hoje, para intensificar o sentimento de estagnação, o Atlético vive dias pesados, onde há mais cobranças do que alegrias; mais fúria do que fantasia; mais tensão e menos paixão. Hoje, parece só haver desesperança e parece, no fundo, que nada (de bom) acontece.

Outra vez, valho-me das palavras do Mestre Guimarães Rosa que nos afirmou: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” e, na esteira do belo ensinamento, posso aqui afirmar: Existe um milagre acontecendo diante dos nossos olhos e ele cresce a cada dia, embora alguns finjam não ver. Esse milagre, colossal, é o Atlético Paranaense e sua História; é o Atlético Paranaense e sua Gente; é o Atlético Paranaense e sua Força capaz de fazer um homem triste acreditar na vida e nos milagres que a vida traz consigo e só revela àqueles que não perdem a esperança.

Em nome do meu Atlético e do Atlético dos meus filhos é que escrevo esta coluna. Em nome do seu Atlético e do Atlético dos seus filhos é que escrevo e escrevi todas as colunas. Em nome do nosso Atlético e do Atlético dos nossos filhos é que vivo, e sofro, e luto, e rio, e choro, e não desisto jamais. Sou Rubro-negro, tenho raça, não temo nenhuma morte. Conheço o valor do Atlético e visto sua Camisa por amor. Hoje, convido você a vir comigo e fazer o mesmo. Convido você a vir comigo e tomar parte no milagre que alguns ainda não estão vendo mas que eu garanto: está por todos os lados incendiando as almas que não se deixam levar pela desesperança.


Este artigo reflete as opiniões do autor, e não dos integrantes do site Furacao.com. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.