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Rafael Lemos
Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.
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O verdadeiro time do povo! Ou não?
13/07/2007
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Tudo muda e pouco importa a gente questionar se para melhor ou pior. As mudanças são inevitáveis: “Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”. A canção resume bem. Em 1983, eu ia ao cinema com meus pais e meus dois irmãos. Cine São João, filmes dos Trapalhões – ruinzinhos, bem diferentes do programa da tevê onde o quarteto arrebentava. Pipoca doce ou salgada, uma das duas, naqueles saquinhos de papel, engordurados, e que vinham envoltos num saquinho plástico. A fila para a compra de ingressos se formava na calçada, chovesse ou fizesse sol. No ar, aquele cheiro bom de pipoca. No final da brincadeira, cinco ingressos, mais uns cinco refrigerantes e as pipocas ficavam em torno de uns cinqüenta reais, em dinheiro de hoje. A sala de projeção era acanhada, as poltronas não eram muito confortáveis e a gente tinha que rezar para que um grandalhão não sentasse bem na nossa frente, senão a gente, que era criança, não via quase nada além da cabeça agora transformada em obstáculo dos mais odiosos. E era um grande prazer assistir àqueles filmes, apesar de toda simplicidade.
Em 2006 - quando eu ainda estava com aquela ingrata que eu amava, e que me abandonou (a canção resume bem) – costumava ir ao cinema, nos sábados à noite, num desses shoppings que oferecem de tudo, até felicidade, àqueles que podem comprar. No shopping que costumávamos freqüentar, havia o tal Cinemark cuja orgulhosa descrição anunciava: “são 08 salas em quase 4.000 m² com os principais filmes em cartaz. É diversão garantida com os grandes sucessos do cinema: desenhos, ação, aventura e muito mais nos cinemas do Grupo Cinemark, projetados para oferecer ao público o máximo de conforto e segurança em cada sessão, que conta ainda com a opção de compra antecipada dos ingressos na bilheteria do cinema. Você ainda tem descontos especiais na quarta-feira, em qualquer horário. E a aquisição do ingresso também pode ser feita pela Internet”.
“As poltronas também são bastante especiais: reclináveis com amplo espaço para as pernas, com porta-copos no braço e encaixe para bandeja com guloseimas. Nas duas últimas fileiras de cada sala, poltronas do tipo "love seats", com braços móveis como as poltronas de avião, garantem maior conforto para casais e pessoas obesas. Todos os cinemas estão preparados para receber portadores de necessidades especiais e usuários de cadeiras de rodas”. De fato, é tudo isso mesmo. “Coisa de Primeiro Mundo”, como a gente costuma dizer ao se referir às coisas que, no Brasil, dão certo demais (e custam caro demais também).
No final da brincadeira, dois ingressos e mais dois combos (baldão de pipoca e refrizão) ficavam em torno de sessenta reais. Sala de projeção fantástica, som impecável, nenhum obstáculo visual, poltronas do tipo "love seats", com braços móveis, para que eu pudesse passar o filme inteiro com a mão pousada nas pernas dela (pousada, não; taxiando pelas pernas dela. Bons tempos, mulher ingrata!). Era um grande prazer assistir àqueles filmes no Cinemark, pois não há como negar que o conforto é uma maravilha e nem eu estou aqui para fazer um discurso anticonsumo ou coisa que o valha.
“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”. A canção resume bem. Tudo muda e pouco importa a gente questionar se para melhor ou pior. Ocorre que, se a gente voltar aos dois cenários que acabei de descrever, perceberemos algo muito cruel e, a meu ver, inaceitável. Em 1983, o povo mais simples – sob a ótica do poder aquisitivo – podia freqüentar as salas de cinema, hoje, não. Em 1983, as salas de projeção eram fartamente distribuídas pelo Centro de Curitiba, todas ao alcance do transporte coletivo, acessíveis ao cidadão comum. Era comum ver pessoas mais humildes comprando seus ingressos, suas pipocas e até mesmo trazendo suas pipocas de casa. E era legal ver essas cenas, pois havia certo lirismo, uma pureza que só as coisas simples conseguem verdadeiramente imprimir à vida. O povo pertencia à vida da cidade e a vida da cidade pertencia ao povo e esse raciocínio pode ser resumido numa só palavra: cidadania.
Com o surgimento dos shoppings, os cinemas foram minguando no Centro – claro que houve outros fatores, não pretendo ser tão simplista – mas admitamos o advento dos shoppings como marco da derrocada geral dos cinemas do Centro. Os shoppings - com suas estruturas modernas e confortáveis – absorveram o público consumidor, incluindo-se aí os freqüentadores dos antigos cinemas, entretanto, em face do encarecimento dos ingressos, da cobrança de estacionamento, da dificuldade de acesso por meio de transporte coletivo (lembrem-se do Shopping Center Pinhais que era longe e mal servido pelos ônibus) grande parte do povo ficou alijada de se manter consumidora do cinema. Daí, resignaram-se com os programas televisivos e, por isso, deram asas aos famigerados Gugu e Faustão (dentre outros) e suas programações recheadas com fartas doses de lixo, atrocidades e desserviços à cultura do Brasil. O povo foi perdendo a importância que tinha para a vida da cidade, salvo – naturalmente – em época de eleição onde ainda pode ser visto em destaque especial. Esse raciocínio pode ser resumido numa só expressão: exclusão social. Aliás, a exclusão social só não é conduta típica e antijurídica – crime – porque é praticada pelas elites contra o povo e, como a gente sabe, as elites são inimputáveis.
A melhoria dos cinemas que, em tese, deveria beneficiar o povo, agiu de forma contrária, posto que o afastou das salas de projeção ou, pelo menos, afastou grande parcela popular do direito – tão brasileiro – de curtir um cineminha no final de semana. A mesma coisa está acontecendo com o futebol. A melhoria dos estádios que, em tese, deveria beneficiar o povo, agiu de forma contrária, posto que o afastou dos campos ou, pelo menos, afastou grande parcela popular do direito – tão brasileiro – de curtir um joguinho no final de semana. E quando se fala em ingressos caros, a resposta surge na ponta da língua de todos os dirigentes: “O futebol é um espetáculo caro, os salários dos jogadores são altos, as exigências da FIFA são muitas, o material esportivo é uma nota, e por aí vai”. Ao falarem isso, eles não mentem, mas contam – de certa forma – apenas metade da verdade.
Quem gosta de futebol, e se aprofunda um pouquinho, sabe, e não é de hoje, que bilheteria nunca manteve time de futebol de portas abertas. A receita de um clube é feita também da grana que entra pelas bilheterias, mas não somente. Aliás, um dos argumentos usados pelos dirigentes até pouco tempo atrás para defender a construção de estádios menores era o fato de o público-alvo ter mudado. Eles diziam: “Hoje, uma partida de futebol não é mais vista pelos 20 mil torcedores que estão no estádio, mas, sim, por 200 mil, 2 milhões, espalhados pela cidade, estado, país e fora das fronteiras nacionais. Só a bilheteria não mantém um time”.
Esse era o discurso que eles usaram quando as tevês passaram a crescer os olhos sobre o filão de ouro que era, e é, o futebol. Ocorre que os dirigentes que trataram com as tevês nesse período não sabiam direito quanto valia o produto futebol e, por ignorância, venderam o produto por muito pouco, assinaram contratos com cifras muito abaixo do que deveria valer o futebol. E assinaram os contratos nessas bases desvalorizadas e depois assinaram os aditivos. E no mundo dos negócios o hábito, o costume e a prática reiterada são mais fortes que a lei. Por isso, os contratos foram se solidificando em quantitativos financeiros insuficientes para a manutenção dos clubes.
Com pouco dinheiro em caixa, os clubes lançavam mão da venda de jogadores. Com a corda no pescoço, vendiam seus craques por muito menos do que valiam e essas vendas não estancavam a hemorragia financeira das Instituições que, numa pinimba de fazer chorar, socorriam-se nos Bancos em busca de empréstimos. Bancos concedem empréstimos para clubes, para mim e para você, exigindo em troca garantias reais ou fidejussórias. Por vezes, exigem garantias sobrenaturais. Houve clubes que perderam CTs (o Fla-Barra virou Vasco-Barra, por exemplo). Houve agremiações que, sem garantias reais ou fidejussórias a oferecer, botaram suas almas no prego (algumas conseguiram resgatar suas dívidas, outras – inadimplentes – viraram clubes sem alma e mergulharam nas mais diferentes misérias: rebaixamentos sucessivos e abissais, arrefecimento das paixões, desconfiança e a atrofia natural àqueles que sofrem com a falta de dinheiro).
A receita de um clube é feita também da grana que entra pelas bilheterias, mas não somente. Devem entrar na coluna dos Ativos financeiros os contratos com as televisões, o patrocínio das camisas, a venda de espaços publicitários estáticos dentro dos estádios, o licenciamento dos produtos, a venda de jogadores, a expansão comercial das escolinhas através das franquias, etc, etc, etc. Porém, por incapacidade de muitos dirigentes, a coisa não prosperou, ou rendeu bem abaixo do necessário, nos quesitos contratos com as televisões, patrocínio das camisas, venda de espaços publicitários estáticos dentro dos estádios, licenciamento dos produtos, venda de jogadores e expansão comercial das escolinhas através das franquias. Daí, resolveram se convencer – e convencer os demais – que a coisa não anda, ou anda mal, por culpa da baixa freqüência de torcedores nos estádios, na baixa procura por plano de sócios, etc. e tal.
E aí, por terem falhado na captação de recursos diferentes da bilheteria, resolveram salgar o preço dos ingressos embutindo neles o que deixaram de arrecadar por meio de outras fontes. Então, quando o torcedor paga 40 reais para assistir ao jogo está pagando os 20 reais - que deveria ser o preço justo do ingresso, afinal o futebol é popular, faz parte da cultura do povo, e cultura é direito garantido na Constituição Federal de 1988, aliás, chamada de Constituição Cidadã – e mais “vintão” para cobrir o que não se arrecadou com aquelas outras fontes (e não se arrecadou porque os dirigentes – ou grande parte deles - curvaram-se, e ainda se curvam, diante dos poderosos e crescem apenas para cima dos mais humildes). Não é o caso do nosso Atlético, até porque o Petraglia sempre peitou os “grandões”, mas inúmeros dirigentes se apequenaram e foram dizer amém para os poderosos (Eurico Miranda, Jacob Mehl, Carlos Miguel Aidar,Carlos Bernardo Facchina Nunes, Afonso de Araújo Paulino, Fábio André Koff, Irmãos Perrela e por aí vai).
Fizeram, e ainda fazem, no futebol, o que os dirigentes políticos fazem na vida do povo brasileiro: a conta não fecha, aumentem-se os valores dos impostos. Mesmo assim a conta não fecha: criem-se impostos. Continua não fechando? Bota a culpa no povo que insiste em comer, procriar, ficar doente e ter essa mania de querer educação! “A culpa é do povo que não paga impostos, e onera os serviços públicos!” - e não do político que mete a mão – ou ambas – no Erário! – discurso fácil. O povo foi perdendo a importância que tinha e só é lembrado em época de eleição onde ainda pode ser visto com algum interesse especial. Esse raciocínio pode ser resumido na expressão: exclusão social, que só não é descrita como crime porque é praticada pelas elites que são inimputáveis e que produzem as leis (ou mandam produzir).
Se a conta dos clubes não fecha, não é por culpa do povo: ele não pode pagar 40 reais por partida, mas pagaria 20 reais - que deveria ser o preço justo do ingresso, afinal o futebol é popular. Infelizmente, os dirigentes do futebol brasileiro – na hora de negociar – tomaram dribles desconcertantes das televisões, dos industriais, dos donos do Capital, e, agora, precisam correr atrás do lucro, mas que o façam com justiça e com respeito, afinal o futebol sempre foi a alegria do povo e nosso povo - tão aviltado, tão humilhado - não merece mais sofrer, não merece perder a (pouca) alegria que ainda lhe resta.
E vai daqui meu modesto rol de sugestões práticas para incrementar a arrecadação. Há 1 milhão de atleticanos, todos loucos para comprar as camisas do Atlético. Nem todos podem pagar 140 reais. Logo, lancem coleções em três faixas de consumo: 140, 90 e 45 reais – tudo licenciado. Vendam-se ingressos a 30 e 40 reais, mas garantam um espaço popular com ingressos a 20 reais: os mais humildes também têm sede de Arena, têm sede de Atlético. Vendam-se tijolos simbólicos para ajudar na conclusão da Arena (tijolos a 3 reais) e verão como o povão quer, e vai, ajudar. Por fim, preclaros dirigentes Rubro-Negros, ouçam a voz do povo, pois ela é a voz de Deus. Diante de Deus, somos todos rigorosamente iguais, de onde se conclui – por via de conseqüência – que todos os atleticanos são, também, rigorosamente iguais, não havendo um atleticano melhor do que outro, por mais sócio que seja, por mais anônimo que pareça ser. Tudo pode mudar, menos o nosso amor pelo Atlético, o verdadeiro time do povo. Ou não?
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