Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Carta aos sobreviventes

08/07/2007


Primeiro de agosto de 1985, o dia mais longo da História. Primeiro de agosto de 1985: o dia que levou dezesseis anos para acabar. Lembro-me bem daquelas vinte e quatro horas e de todas as milhares de horas que tive de viver até chegar vinte e três de dezembro de 2001, o dia que ocupou meus sonhos por todas as noites daqueles dezesseis anos.

Primeiro de agosto de 1985, poucos dias depois do meu aniversário de dez anos. Coritiba campeão brasileiro, tudo o que eu não queria. A final começou na noite de 31 de julho e só acabou na madrugada de primeiro de agosto. Foi difícil dormir naquela noite, mais difícil ainda foi acordar pela manhã.

Saí da cama até o banheiro sem que ninguém me visse. No espelho, minha cara estava branca. Olhos vermelhos de tanto chorar; olheiras pretas, profundas. Esse era o meu semblante rubro-negro, esse era o rosto de todo atleticano, naquela manhã que, ainda não sabíamos, iria durar dezesseis anos. Cidade inteira em verde e branco.

No colégio, cheguei de olhos baixos. Logo me juntei aos demais amigos atleticanos. Aos poucos, mais guris de olhos baixos iam chegando e se irmanavam naquela fraternidade silenciosa. Cada um que chegava fazia aumentar o volume humano, embora fosse mantido um silêncio sobrenatural. Não havia o que falar. Estávamos atônitos, atordoados, amargurados, abatidos.

Não demorou e fomos cercados pela hoste coritibana. Gritos, risos, jornais que estampavam manchetes verdes sendo folheados na nossa cara, estrelas amarelas feitas de cartolina, camisas verdes por todos os lados. Dentro da sala, a professora saudava os vencedores dizendo que o Coritiba era o orgulho do Paraná e do Brasil. Palmas e gritos que reverberaram dezesseis anos na minha cabeça. Gritos, risos e a impressão de estar ficando menor a cada aplauso adversário.

Durante o recreio fui ao banheiro. No espelho, minha cara estava branca. Olhos vermelhos de tanto chorar; olheiras pretas, profundas. Esse era o meu semblante rubro-negro, esse era o rosto de todo atleticano, naquela tarde interminável que, ainda não sabíamos, iria durar dezesseis anos. Inferno em verde e branco, fraternidade silenciosa, olhos baixos, meninos atônitos, atordoados, amargurados, abatidos, mas, acima de tudo, atleticanos.

Depois do dia primeiro de agosto de 1985 houve outros dias: iguais e piores. Nos dias que se seguiram, surgiram os reflexos da conquista verde. Primeiro time paranaense a ser campeão brasileiro, primeiro time paranaense a disputar uma Libertadores da América. E não bastasse isso, jogavam na nossa cara: 27 títulos estaduais e o maior estádio particular do Estado. De quebra, uma estrela amarela na camisa a brilhar diante de nossos olhos incrédulos e entristecidos. Tínhamos dez anos, éramos apenas meninos, e tivemos de suportar aquilo tudo com uma coragem digna de heróis.

Tínhamos um time, uma camisa, um estádio acanhado, 13 títulos estaduais, 61 anos de História e um orgulho danado de tudo isso. Tínhamos um time, uma camisa, um estádio acanhado, 13 títulos estaduais, 61 anos de História, um orgulho danado de tudo isso e, agora, uma vontade inabalável de provar à hoste verde e branca que, em nossas veias, corria um sangue quente e orgulhoso e que, em nossa alma, havia um desejo que se agigantava de mostrar a um país qual era o nosso real valor. Tínhamos, ao lado disso tudo, um objetivo claro: conquistar o Brasil e botar na camisa Rubro-Negra uma estrela amarela, daquelas que valem uma vida inteira dedicada a uma causa.

Os verdes se jactavam: primeiro time paranaense a ser campeão brasileiro, primeiro time paranaense a disputar uma Libertadores da América, 27 títulos estaduais, maior estádio particular do Estado e uma estrela amarela na camisa a brilhar diante de nossos olhos incrédulos e entristecidos. Agora, tínhamos, definitivamente, um objetivo claro: conquistar o Brasil e botar na camisa Rubro-Negra uma estrela amarela, daquelas que valem uma vida inteira dedicada a uma causa.

Primeiro de agosto de 1985, o dia mais longo da História. Primeiro de agosto de 1985: o dia que levou dezesseis anos para acabar. Lembro-me bem daquelas vinte e quatro horas e de todas as milhares de horas que tive de viver até chegar vinte e três de dezembro de 2001, o dia que ocupou meus sonhos por todas as noites daqueles dezesseis anos.

Durante dezesseis anos, não pensei em outra coisa que não fosse a conquista da estrela amarela. Durante dezesseis anos, ano a ano, sonhei com uma final de brasileirão envolvendo o Atlético Paranaense. Em 86, depois de uma vitória por 2 a 1 em cima do Flamengo do Kita & Cia, em que jogamos 75 minutos com um homem a menos pois o lateral-direito Bruno fora expulso logo no início do jogo, sonhei com a estrela amarela, e ela não veio.

Apesar de termos nos garantido em campo para a disputa da Série A em 1987, fomos surpreendidos com uma virada de mesa protagonizada pelo recém criado Clube dos Treze. Inventaram um tal de Módulo Amarelo – uma segundona disfarçada – e lá fomos nós disputar o brasileiro. Nós com o Atlético, em todos os momentos. Ao final, voltamos à Série A de onde nos tiraram a golpes de caneta, de politicagem, de falta de caráter. Voltamos de peito aberto, coração vermelho e preto batendo forte, coragem e esperança nos olhos que procuravam, por toda parte, aquela estrela.

1988 passou. Em 1989, rebaixamento. 1990, a volta para a Série A. 1991 começou como se fosse um sonho: três jogos, três vitórias espetaculares. Batemos o Flamengo por 3 a 0, logo na estréia. Depois batemos o Grêmio por 4 a 2, num jogo inesquecível. Fizemos 3 gols nos primeiros quinze minutos do primeiro tempo. O Rafael – aquele que tinha sido bicampeão paranaense pelo Atlético em 82/83 – pegara um pênalti: jogaço. O terceiro triunfo foi ganhar do Fluminense por 2 a 0 dentro das Laranjeiras.

Éramos todos uns loucos, uns apaixonados correndo atrás do velho sonho de conquistar a estrela amarela que agora parecia uma realidade próxima. Num sábado à tarde, assistimos maravilhados a uma reportagem do Esporte Espetacular falando do nosso Atlético. No programa apareceram os Fanáticos com suas bandeiras tremulando na velhíssima Baixada; apareceram os jogadores dando entrevistas e o povão sendo abordado na Rua XV para falar do sonho de conquistar o brasileirão. Nós na Globo! Sonho, sonho (seriam dezesseis anos de sonhos).

1991, frustração. Terminamos em 17º lugar. 1992, nada. 1993, fomos rebaixados. Peito ferido, olhos vermelhos de tanto chorar, olheiras pretas, profundas. Esse era o semblante de cada Rubro-Negro. 1994, luta! Foi por pouco. 2 a 2 contra o Juventude em casa. A volta seria lá e seria difícil, a gente sabia. 4 a 2 e mais um ano na segunda divisão. Começar de novo. 1995, luta! Nunca fomos tão Rubro-Negros! Média de 17 mil torcedores na Baixada. Éramos uns loucos, apaixonados, éramos mais Rubro-Negros.

No peito o velho sonho de conquistar a estrela. O céu talvez fosse o limite, talvez. 1996, campeonato impecável. 20 mil torcedores de média na velha Baixada. Tiveram de instalar arquibancadas metálicas para acomodar a massa que só fazia aumentar. 31 mil torcedores no jogo decisivo contra o Galo. Precisávamos de dois gols, fizemos um. O outro parou nas mãos do tetracampeão Taffarel. Lágrimas. Olhos vermelhos, olheiras pretas e profundas. Aplausos, hino cantado por 31 mil vozes embargadas: “A Camisa Rubro-Negra só se veste por amor”.

1997, STJD da CBF. Ou a gente se unia, ou acabavam com o Atlético. Vencemos a tudo e a todos: sobrevivemos. Dias duríssimos. Tínhamos um estádio para edificar, contra tudo e contra todos. 1998 passou assim. 1999, inauguração da Arena, estádio dos sonhos. A vantagem verde sofria a primeira derrota: agora, nós também tínhamos um belo estádio para nos encher de orgulho.

1999, Timaço. Conquistamos a Seletiva para a Libertadores. A vantagem verde sofria a segunda derrota: agora, nós também tínhamos uma disputa de Libertadores no currículo e só restava a eles nos esfregar na cara a estrela amarela, objetivo maior de cada um de nós, atleticanos. 2000, uma derrota de virada para o Internacional, inferiorizado numericamente, deixou-nos fora da disputa. Derrota dolorida, inaceitável, absurda. Esperança e sonhos adiados na interminável jornada de recomeçar.

E chegou 2001. No início daquele ano mágico, nenhum de nós poderia imaginar o que o destino estava nos reservando. Começamos o ano sob o comando do antipático Carpegiani que nos abandonou em plena disputa do Estadual. Na superação, tornamo-nos bicampeões estaduais depois de 18 anos. Entramos no brasileiro sem grandes pretensões e perdemos no início até que chegou um tal Geninho para comandar: Flávio, Alessandro, Gustavo, Nem, Rogério Corrêa, Igor, Fabiano, Cocito, Pires, Kleberson, Adriano, Adauto, Kleber, Souza e Alex Mineiro.

Era 23 de dezembro de 2001 quando eu, aos vinte e seis anos, vi diante dos meus olhos o nascimento da estrela amarela que eu perseguira por dezesseis anos a fio. Era 23 de dezembro de 2001 quando eu, enfim, pude pôr fim àquele dia primeiro de agosto de 1985 e que já durava dezesseis anos.

Tínhamos, enfim, um time, uma camisa, um estádio moderníssimo, 19 títulos estaduais, 77 anos de História e um orgulho danado de provar a todo o Brasil - inclusive e principalmente à hoste verde e branca - que, em nossas veias, corria um sangue quente e vencedor e que, em nossa alma, havia um desejo que se agigantava de mostrar ao mundo qual era o nosso real valor. Tínhamos agora - ao lado disso tudo – o orgulho de mostrar a todos que, em nosso manto sagrado, havia uma estrela amarela que fora nosso objetivo maior por longos dezesseis anos.

Durante dezesseis anos tivemos um objetivo claro: sagrarmo-nos campeões do Brasil. Não sossegamos um só instante até vermos brilhando, na nossa camisa, a estrela amarela, motivo maior de nosso orgulho futebolístico. Por dezesseis anos, fomos uns loucos, uns apaixonados, uns visionários, uns sonhadores. Por dezesseis anos, fomos atleticanos de corpo e alma, dedicados integralmente à paixão pelo Atlético, mas hoje o que é que sobrou de nós?

O que fizemos dos nossos sonhos, quais são os nossos reais objetivos? O que fizemos da nossa estrela amarela, conquistada com tanto amor e tanto sacrifício? Onde está a estrela amarela que ocupava o topo da marquise da Arena? Pode parecer bobagem, mas eu me entristeço ao passar – todas as noites – diante da Arena e ver, na imponente fachada, a inscrição “Kyocera Arena”, e mais nada! Cadê a minha estrela amarela? Será que ela não cabe na fachada? Será que impeditivos arquitetônicos ou contratuais expulsaram de lá a minha, a nossa, estrela amarela?

Eu leio “Kyocera Arena”, onde deveria estar escrito – em néon e tudo mais – “Campeão Brasileiro de 2001”. Cadê a inscrição orgulhosa “Campeão Brasileiro de 2001” sobre a marquise da Baixada? Será que ela não cabe na fachada? Será que impeditivos arquitetônicos ou contratuais impedem de estar lá a grande notícia que temos para contar depois de tantos anos de batalha? Todo time que conquista algo importante, bota a notícia na marquise do estádio, em luzes potentes, para que todos possam ver, e se alegrar com a grande conquista, ou invejá-la.

Nós, não! Nós escrevemos, apenas, “Kyocera Arena” – como se essa parceria comercial fosse a grande coisa a se contar depois de 83 anos de História. Aliás, deveriam escrever, em néon, abaixo da marca Kyocera o seguinte slogan “The New Value Frontier” ou, quem sabe, “Líder mundial na fabricação de telefones celulares”. Durante dezesseis anos tivemos um objetivo claro: sagrarmo-nos campeões do Brasil, mas hoje nenhum atleticano sabe dizer ao certo qual é o objetivo do Atlético.

Durante dezesseis anos enchemos todos os estádios, batemos recordes em cima de recordes de públicos em todos eles, durante dezesseis anos mantivemos acesa uma paixão avassaladora, maior do que tudo, do tamanho do sonho absurdo que era conquistarmos o Brasil. Levamos dezesseis anos para conseguir tudo isso e conseguimos, mas, e agora? “A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora?”.

Após a derrota para o Botafogo o técnico Antônio Lopes participou da entrevista coletiva no Estádio Mané Garrincha e mais uma vez falou que o resultado foi justo. "Resultado justo o Botafogo teve grande atuação e tem uma qualidade técnica superior a nossa, não é a toa que eles são líderes do campeonato", falou o treinador atleticano. Perder parece que virou coisa normal, facilmente assimilável. E agora?

O jovem meia Kaio, que recebeu a grande chance de atuar como titular no jogo contra o Botafogo neste sábado, afirmou após a derrota por 2 a 0 que a torcida Rubro-Negra não precisa ficar preocupada para a seqüência do Campeonato Brasileiro. "A equipe não conseguiu colocar dentro de campo o futebol que a gente vinha treinando, mas acho que não é para a torcida se preocupar. Vamos trabalhar para melhorar contra o próximo adversário. Acho que a gente tem tudo para melhorar com a volta do Ferreira e do Alex", observou. Despreocupação também virou tônica. Deixa pra lá! Cair a gente não cai, tudo sob controle. Será? E agora?

O Clube cutuca os rivais da cidade que cobram ingressos muito acima dos praticados no estádio mais moderno da América do Sul e que não disponibilizam nenhuma vantagem e comodidade dentro dos seus estádios e compara os preços praticados na Arena da Baixada e nos estádios do Sul do país. Mas daí a gente vai ao estádio e vê um time burocrático e sem vida empatar – a duras penas – com o combalido Náutico, time que será rebaixado à Série B ao final deste brasileiro. Aquele futebolzinho inanimado do jogo contra o Náutico vale 30, 40 “conto”? E agora?

Hoje, temos de fato um objetivo para vivermos a nossa paixão amalucada que fez de nós os grandes campeões brasileiros de 2001? Será que a nossa opção é tocar a vida nessa pasmaceira, afinal de contas o Coritiba está lá na segunda divisão e, nem de longe, faz sombra para nós? Já que não existem rivais na cidade à altura de nossa atual condição vamos dormir em berço esplêndido? O que foi feito de cada um de nós, atleticanos, agora que acabou o longo dia que durou dezesseis anos?

No longo dia que durou dezesseis anos, fomos mesmo atleticanos ou fomos – no fim das contas – apenas anticoxas? E hoje, pelo fato de o coxa ter se tornado um rival espectral a ponto de nem sequer nos incomodar, haverá anticoxas? Haverá atleticanos? Nós ainda existimos ou - a exemplo deles e lhes seguindo os erros - também viramos um espectro do que um dia fomos?

Tenho medo de que, numa manhã dessas, eu saia da cama até o banheiro sem que ninguém me veja, e, no espelho, não encontre mais a minha cara branca, nem meus olhos vermelhos de tanto chorar, nem as olheiras pretas e profundas, nem meu semblante rubro-negro, nem meu rosto atleticano. E tenho medo que isso aconteça com todos aqueles que viveram um dia que durou dezesseis anos, mas que hoje parecem estar mortos.


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