Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Engenhão: Pan e Circo

03/07/2007


No último sábado, foi inaugurado o Estádio Olímpico João Havelange, o Engenhão, de propriedade da prefeitura do Rio de Janeiro. O prefeito da Cidade Maravilhosa, César Maia, era só euforia ao bradar aos quatro cantos que os 400 milhões de reais investidos na obra tinham saído, integralmente, dos cofres da Municipalidade. Fosse o Brasil um país sério, o homem tinha sido preso ali mesmo, posto que é inaceitável a cidade do Rio de Janeiro torrar 400 milhões de reais do seu Erário, enquanto os cariocas não têm segurança pública, saúde, educação, liberdade e direito à vida. Deboche: é o Rio do Engenhão!

Enquanto o Prefeito vivia o seu dia de JK, traficantes dos morros da Fallet e do Fogueteiro, no Rio Comprido, criavam o "caminho das drogas" para atrair consumidores de entorpecentes a dois pontos de venda. Usando substância branca, que a polícia ainda não sabe a composição (a polícia como sempre bem informada), fizeram traçado para ligar a Rua Barão de Petrópolis até bocas-de-fumo da Rua Jaqueira e da Boca do Canal. No início da trilha e na chegada aos pontos de venda, há a inscrição CVRL, em alusão à facção Comando Vermelho e ao seu fundador, Rogério Lengruber, o Bagulhão, já morto.

Em outro trecho do caminho, além da inscrição da sigla da quadrilha, os criminosos das favelas colocaram uma seta na direção das bocas-de-fumo, com a indicação "Tipo Colômbia". Segundo investigações, a cocaína do Fallet-Fogueteiro é apontada pelos viciados como uma das mais puras vendidas nas favelas cariocas. "Essa sinalização já havia sido feita outras vezes para indicar a quem compra a chegada de pó de boa qualidade", explica um agente da Polícia Civil. Desmando: é o Rio do Bagulhão!

Em êxtase, o Prefeito vivia sua apoteose e, em face do seu contentamento, teria lhe caído bem um traje de baiana da Mangueira ou uma daquelas fantasias à Clóvis Bornay: "César Maia, Prefeito Folião, em Tarde de Esplendor e Glória no Engenhão". E, nas ruas do Rio, marginais nascidos em berço de ouro arrebentam uma trabalhadora que esperava o seu ônibus no retorno para casa.

Não foi a primeira vez, não será a última: jovens superprotegidos - donos do mundo, da mídia, de tudo - protagonizando cenas de violência gratuita e de covardia sem limites. Jovens superprotegidos - donos do mundo, da mídia, de tudo - alimentam o comércio de drogas na Boca do Canal. No fim de todos os inquéritos e ações penais: absolvição, filha da impunidade. Jovens viciado, círculo vicioso. Desânimo: é o Rio da Omissão!

De minha parte, nada contra investimentos no Esporte, ao contrário: esporte é vida, é crescimento, é progresso, é cultura. Mas numa cidade onde há tantas urgências, 400 milhões de reais retirados dos cofres públicos para a construção de um estádio? É um acinte, é um erro, é uma falta de respeito com a população.

E aos que me retorquirem dizendo que o Pan Rio-2007 vai ser uma festa, vai trazer divisas, vai gerar empregos, respondo: não há razões para festejar, enquanto pessoas morrem vitimadas por balas perdidas nas ruas e até dentro de suas casas. Pouco importam as divisas adquiridas quando se tem um território cujas fronteiras são marcadas com sangue ou cocaína. Apequenam-se os empregos temporários gerados quando as crianças são admitidas - maciçamente, desde sempre - como vapores nos morros ou prostitutas no asfalto. Determinismo: é o Rio do "Mãos ao alto!".

No último sábado, foi inaugurado o Engenhão, de propriedade da prefeitura do Rio de Janeiro, erigido com 400 milhões de reais advindos de um povo entristecido por tanta violência. O Engenhão, apesar de ter sido construído pelo povo, foi batizado de Estádio Olímpico João Havelange, em clara homenagem à elite diretiva do futebol carioca, fluminense e brasileiro.

Até na hora honrosa do batismo do belo Estádio, esqueceram da população e, até aí, nada de novo. Mais justo e bonito seria batizá-lo: Estádio Olímpico Mané Garrincha, A (verdadeira) Alegria do Povo. Mas que nada: o Mané, que com suas pernas tortas passou a vida entortando os joões e que foi a síntese do puro futebol carioca - e foi também a tese e a antítese, além da vida e da alma - acabou driblado por um João de cintura dura, um João fidalgo, um João Havelange - bu-ro-crá-ti-co! E o homem do povo acabou, uma vez mais, esquecido, negado, diminuído. Decepção: é o Rio da ingratidão, é o Rio do Engenhão.

Em Roma, Panem et circenses e a Pax dos Césares. No Rio do César Maia, não há paz, nem pão. Mas sobra Pan e Circo e talvez isso baste ao povo alegre e cordato da Guanabara. Cada povo tem o governo que merece e todo governo medíocre quer um povo submisso. Subdesenvolvimento e submissão: esse é o Rio que se apequena sob a aparente evolução. Esse é o Rio sem engenho, esse é o Rio do Engenhão.


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