Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Atlético: Vida e Morte

11/06/2007


Quando a gente nasce é grande a expectativa. Parentes causam burburinho pelos corredores do hospital. Os homens fumam na calçada, as mulheres não largam o terço, até que a gente chega enfim para ocupar o berço. É festa que não acaba mais. Acontece isso todo dia, para a suprema alegria dos pais.

“É a cara do pai, é a cara da mãe, não tem cara de nada, espera desinchar, tá branco demais, acho que nem se cria” – até que alguém sugere um nome e a confusão reinicia. “Tem cara de Alberto, parece Marcelo, eu quero Rodrigo, só se for Frederico, Raul é bonito, legal é Carlos Eduardo” – até que se faz um consenso, caído do Céu, e alguém resolve chamar o piá de Rafael.

Já tendo nome o rebento, e sendo curitibano, os homens se reúnem, como nas eleições do Vaticano, e a fumaça branca só sai quando a maioria decide se o guri vai ser coxa ou atleticano. No caso do Rafael, votação apertada. Pai, avô, tios, primos deliberando pra que time o guri será entregue, até que por doze votos a dez resolvem que o menino vai ser verde e branco, como o Kosilek.

Em julho de 75, dez dias depois da neve, a comitiva dos verdes, caminha em direção à Fedato, comprar camisa do coxa, calção do coxa, meia do coxa e sapato. Depois vestem tudo isso no Rafael e não esquecem de tirar um retrato. O guri no colo da mãe - de tão verde, parece um repolho – e faz tanto frio em Curitiba que do Rafael só dá pra ver um olho.

E o moleque cresce assim meio sem direito à escolha. Tem medo de assistir ao Fantástico, pois aparece sempre o “menino da bolha” que vive dentro de uma proteção de plástico. Por ter imunidade baixa, o menino da reportagem vive numa bolha e tem o rosto branco como uma folha. Rafael sente medo da morte, mas lhe dizem que a morte é coisa certa, e que a vida nem sempre permite escolhas quando a coisa aperta.

“Decidem o meu nome, decidem o meu time, agora é preciso que eu decida, senão este mundo me oprime” – pondera o garoto de seis, quase sete anos de idade, que acha o verde empalidecido e o vermelho vivo de verdade. “Verde e branco, nesses tons eu não me meto. Quero uniforme novo, quero vestir vermelho e preto”. Decisão tomada, era ocupar seu lugar na velha e boa Baixada.

Vinte e cinco anos passam, um homem escreve suas histórias. Derrotas e vitórias, em tudo que o cerca e se alterna: o corpo é finito; a alma, eterna. Religiões, Filosofias, Teses, Antíteses, Sínteses e Constatação: aceitar é a regra, escolher é a exceção. O homem aceita o nome, o sobrenome, a cartilha, o pronome, a igualdade, a desigualdade, a equação: aceitar é a regra, escolher é a exceção.

O homem se chama Rafael, houve um tempo em que queria se chamar Maurício, mas acabou se acostumando com o nome que lhe foi dado no início. O homem assina a petição, paga as custas (como estão altas!) com um maço de dinheiro, houve um tempo de sonhos onde o menino queria ser bombeiro, pra salvar as pessoas daquele prédio que ardeu em chamas num mês de fevereiro.

Vinte e cinco anos passam, um homem escreve suas histórias. Coisas pra se orgulhar, coisas pra se esquecer: dia tenso, noite terna. O sono é finito; a saudade, eterna. Religiões, Filosofias, Teses, Antíteses, Sínteses e Constatação: aceitar é a regra, escolher é a exceção. O homem aceita o nome, o sobrenome, a cartilha, o pronome, a igualdade, a desigualdade, a equação. O homem só não aceita que lhe mandem no destino, que lhe mandem no coração.

Assim, contrariando a vontade da maioria, Rafael, que não escolhera seu nome, nem escolhera a terra em que nasceria, tirou a camisa do coxa, calção do coxa, meia do coxa, sapato do coxa e todo verde que nele havia. Jogou tudo num canto do quarto e disse que verde ele não mais vestiria.

Depois foi até à Fedato, com bom dinheiro na carteira, e em companhia da avó comprou camisa, calção e bandeira. Tudo em vermelho e preto, para que ficasse esclarecida a questão: eles achavam que o Rafael nascera coxa, mas o guri já nasceu Furacão! E o guri que eles queriam ver “Kosilek” acabou sendo “Nego Fião”!

A vida passa rápido demais. Quando a gente morre é grande a comoção. Parentes choram alto, choram baixinho, à beira do caixão. Os homens fumam na calçada, as mulheres não largam o terço, e a gente lá esticado, no indesejável berço. É tristeza que não acaba mais. E sobre o corpo, a bandeira do Atlético, manto sagrado como a simbolizar a grande e definitiva escolha que o homem fez.

Na última hora, o homem - a quem chamaram Rafael, e que nasceu verde – parte vermelho e preto, cercado pelos seus em direção aos Céus, na direção de Deus. Quem conhece a poesia é mais forte. Disse o poeta: Rubro-Negro é quem tem raça e não teme a própria morte. Quem vive Atlético, morre Atlético e não teme nada. Ah, quando eu morrer, enterrem o meu corpo no Água Verde e o meu coração na Baixada. Assim, descansarei feliz. E mais nada.


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