Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Os guris e seus sonhos

28/05/2007


Gosto de caminhar pela cidade. Nunca pelo mesmo caminho. Na verdade, mesmo repetido, o caminho nunca é o mesmo. Até as pessoas que passam por mim estão sempre diferentes sob a fisionomia aparentemente intocada.

Olhos curiosos, fico imaginando as histórias que se escondem atrás de cada janela. Dentro de cada apartamento, dentro de cada pessoa. Fico imaginando histórias, tentando traduzir a vida e tudo que nela cabe, tudo que dela escapa, transborda ou se esconde debaixo dos grandes e pequenos mistérios, dos segredos.

Já estive em muitas casas, conheci muitas pessoas. Conhecer pessoas é uma grande viagem, às vezes dura uma hora, às vezes uma vida inteira, às vezes mais. Por dois anos fui professor particular, estive em muitas casas, conheci muitas pessoas, empreendi grandes viagens.

Gosto de ensinar. Nunca a mesma lição. Na verdade, mesmo repetida, toda lição é nova, embora pareça igual, pois sempre há algo de oculto nos sujeitos aparentes e um traço de indeterminação nos sujeitos mais determinados. Dentro de cada sujeito se escondem os pequenos e grandes mistérios que vão sendo revelados e que viram histórias quando a gente quer falar de vida. Estive em muitas casas, conheci muitas pessoas.

Felipe La Rocca, em 2004, tinha vinte anos e queria ser médico. Gaúcho da cidade de Três de Maio, torcedor colorado. Morava ao lado do Couto Pereira, só saía de casa para ir ao cursinho. Estava tentando Medicina pela terceira vez. Sentia-se fraco nas questões gramaticais. Aluno brilhante.

Durante dois meses, ministrei duas aulas semanais para o Felipe. Repassamos toda a gramática, nenhum tópico ficou longe de nossos estudos. Felipe conseguiu passar numa faculdade particular, e não pôde cursar por conta das altas mensalidades. Sonhos custam caro, só no samba-enredo sonhar não custa nada.

Em novembro de 2005 recebi novo chamado do Felipe. A gramática ainda lhe impunha obstáculos: entre o Felipe e a vaga havia toda sorte de objetos, adjuntos, predicados e figuras de linguagem. Não havia tempo a perder. Devoramos uma vez mais a gramática em aulas de 120, 150 minutos, sem intervalo. Num domingo do final de 2005 o Internacional veio jogar no estádio verde, ao lado do prédio do Felipe.

O Inter ainda tinha chance de ser campeão brasileiro, mas não podia perder o jogo para o time verde. O Felipe tinha toda chance de passar em Medicina, mas não podia perder o jogo para a gramática (e não podia perder tempo). Entre a razão e o coração, Felipe ficou com aquela. Passou o domingo com a cara nos livros e nem mesmo a derrota do Inter e a conseqüente perda do brasileirão para o Corinthians lhe retiraram o ânimo de lutar por sua vaga na faculdade de Medicina. Felipe era brilhante e obstinado.

No início de 2006, Felipe foi aprovado em Medicina na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – ou do Mato Grosso, eu sempre confundo esses Estados – e hoje, seguramente, é um dos mais brilhantes alunos do segundo ano do Curso de Medicina. No final de 2006, Felipe viu seu colorado ser campeão do mundo. Sonhos custam caro, levam tempo, mas valem cada centavo, cada suor, cada segundo investido.

No final de maio de 2006, conheci outro aluno brilhante: Lucas Barbosa, torcedor fanático do Palmeiras, irmão do Ilton Júnior que é são-paulino daqueles de escalar, sem vacilar, o time campeão brasileiro de 1977. Os dois guris moram na Sete de Setembro, perto da Caixa Econômica. Na época, o Lucas devia ter uns 17 anos e o Ilton uns 21, imagino.

Dois guris fantásticos, pena eu ter ido poucas vezes dar aula pro Lucas (o piá era tão bom que poucas aulas foram suficientes). Estive lá três ou quatro vezes, mas foi tempo de sobra pra ficar fã dos dois e da família toda. Esses meninos sofrem de distrofia muscular e, por isso, precisam utilizar a cadeira de rodas.

A distrofia muscular é uma doença neuromuscular de origem genética, cuja característica principal é o enfraquecimento progressivo da musculatura esquelética, prejudicando os movimentos e levando na maioria das vezes o portador a uma cadeira de rodas. Possui uma especificidade que a distingue sobremaneira das demais deficiências motoras: qualquer esforço muscular que cause um mínimo de fadiga contribui para a deterioração do tecido muscular. Isto porque o defeito genético ocorre pela ausência ou formação inadequada de proteínas essenciais para o funcionamento da fisiologia da célula muscular. A literatura médica cataloga mais de trinta tipos de distrofia.

Apesar desse quadro delicadíssimo de saúde, os dois eram jovens ligados a tudo que acontecia e, como jovens, adoravam falar de futebol, mulheres, computadores, carros, rock, escola, faculdade, carreira e tudo isso que impulsiona a conversa da gente. Teve um sábado que o Lucas estava brabo porque o Palmeiras tinha perdido no meio de semana.

Eu e o Ilton aproveitamos pra tirar um sarrinho dele, depois o Ilton tirou um sarro da minha cara porque o São Paulo tinha vencido o Atlético na final da Libertadores-2005 e daí eu disse que se o primeiro jogo tivesse sido na Arena tudo teria acontecido como nas quartas-de-final de 2001, quando batemos o São Paulo por 2 a 1 e partimos rumo ao título.

Três torcedores fanáticos na mesma sala, cada um pelo seu time. Só acabamos concordando num ponto: só mulher é melhor do que futebol. E recomeçamos a discutir: o Lucas preferia as mulheres de Brasília, eu – a duras penas – defendi as curitibanas e o Ilton Júnior, sempre piadista, dizendo que pra ele pouco importava a origem da mulher já que o destino ia ser o mesmo: a cama!

Dois guris fantásticos, pena eu ter ido poucas vezes dar aula pro Lucas, estive lá três ou quatro vezes, tempo de sobra pra ficar fã dos dois e ser tratado quase que como membro da família. Meninos com distrofia muscular. Utilizavam cadeira de rodas. Limitações? Algumas. Mas limitação mesmo é não saber sonhar!

E aqueles guris sonhavam, como sonham todos os guris que têm 17, 21 anos. Sonhavam com times imbatíveis, com carros reluzentes, com mulheres lindas e talvez sonhassem, em segredo, com a cura daquela distrofia muscular. Sonhos não têm barreiras, levam a gente ao Céu, valem uma vida, dão sentido à vida, tornam a vida mais leve, mais linda e mais colorida.

Sonhos aproximam a gente da real felicidade que parece ser inacessível para muitos, mas que, para alguns, está sempre por perto. Naqueles dias em que estive com eles, percebi que eram felizes – muito mais do que eu – porque eram guris que, contrariando qualquer lógica aparente, acreditavam nos sonhos e, por isso mesmo, eram donos de uma alegria tão grande que pôde ser dada fartamente a mim sem que acabasse.

Em 1990, Paulo Roberto Rink, um piá de 17 anos, apareceu no time principal do Atlético e foi campeão paranaense daquele ano, meio que ao estilo Ronaldo Fenômeno, campeão da Copa do Mundo de 94. Em 1993, esteve no Atlético novamente e se destacou em grandes vitórias como a goleada de 4 a 0 sobre o Paraná, em plena Vila Capanema, no dia 13/10/93, pelo Brasileirão. Nada adiantou: o Atlético foi rebaixado em 93 e, em 94, não conseguiria voltar à Elite do Nacional.

Ocorre que, em 1995, ressurge, no Atlético, Paulo Rink! Agora com 22 anos, mais forte, mais experiente, mais jogador do que nunca! A partir daí, o piá escreveu seu nome para sempre na História do Clube Atlético Paranaense. Para encurtar: tornou-se o sétimo maior artilheiro do clube e, com parte dos recursos obtidos quando de sua negociação, permitiu ao Atlético edificar boa porção da Arena, um dos grandes orgulhos do Furacão!

O Paulo Rink foi um guri que sonhou - e sonhou alto, sem medo. No último dia 24, pendurou as chuteiras e marcou seu último gol com a camisa do Atlético, justamente no gramado do Estádio que ele ajudou a construir e onde ele brilhou como poucos ao longo desses 83 anos de História.

No último dia 24, aos 34 anos, Paulo Rink viveu uma despedida de sonhos e ele, mais do ninguém, mereceu essa despedida grandiosa, pois, como já disse, sonhos não têm barreiras, levam a gente ao Céu, valem uma vida, dão sentido à vida, tornam a vida mais leve, mais linda, mais colorida e o Paulo Rink, envergando a camisa Rubro-Negra, permitiu que cada um de nós pudesse sonhar e, mais do que isso, permitiu que o sonho de cada atleticano pudesse se tornar uma feliz realidade feita de gols, de vitórias, de magia, de puro encantamento. Obrigado, Paulo Rink, por ter vestido nossa camisa com tanto amor! Somente um atleticano de verdade, como você, conhece o valor que o Atlético tem e sabe dar ao Atlético o valor que ele merece.


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