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Rafael Lemos
Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.
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Aos meninos velhos
25/05/2007
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Na última segunda-feira à noite, resolvi entrar no msn para encontrar, ainda que virtualmente, alguns amigos e saber alguma boa novidade, ou conversar sobre qualquer assunto. Na verdade, eu estava de bobeira, estado ideal para jogar conversa fora com quem a gente gosta.
Como de costume, as janelinhas de conversa foram se abrindo e fui papeando daqui e dali. Meus ex-alunos vieram me contar que a professora nova acha o vocabulário dispensável no estudo da Língua Portuguesa e que esse negócio de oração subordinada já era. Disse ainda que o Drummond é bom, mas que o Paulo Coelho é mais atual e faz sucesso em todo mundo e que entre Bilac e Arnaldo Antunes ela preferia o ex-titã, principalmente em razão dos Tribalistas. E eu, em frente ao computador, empalidecendo de espanto!
De repente, apareceram a Paty Kiil e a Suzi Pavin, queridas amigas rubro-negras de Colombo; depois surgiu o Waldemar a defender com unhas e dentes o pessoal do PSDB; um pouco mais tarde a Vanessa me falando dos Piratas do Caribe e por fim a minha querida sobrinha Danielle, adolescente de 14 anos de idade, querendo saber como tinha sido a década de 80, pois ela e as amigas tinham de fazer um trabalho escolar que seria coroado, apoteoticamente, com uma festa Anos 80, a ser realizada no super ginásio do Colégio.
Frente ao questionamento da Dani, fui contando para ela como tinham sido os anos 80. Contei pra ela uma porção de coisas: umas lhe causaram riso, outras perplexidade. Contei que no começo dos anos 80 eu gostava de assistir à Turma do Lambe-lambe e que nesse programa tinha um quadro que ensinava a gente a fazer brinquedos usando sucata (caixas de ovos, copinho de iogurte, palitos, etc.) e mais fita adesiva, canetinhas e canudos, dentre outros tantos materiais.
Contei que eu ouvia as músicas do Balão Mágico e do Trem da Alegria (isso provocou muitos risos), mas isso só até os nove anos. Depois passei a ouvir Ultraje a Rigor, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Kid Abelha (Ah, Paula Toller!), Doutor Silvana e Cia, Camisa de Vênus, Barão Vermelho, Metrô, Magazine, Ira! e Engenheiros do Hawaii.
Disse pra Dani que tinha uma música do Doutor Silvana que era assim: “Ela foi dar, mamãe; foi dar, mamãe; foi dar um serão extra, trabalhou com o patrão” (e ela quase caiu da cadeira lá do outro lado de tanto rir).
A gente mascava chicletes Balão Mágico de maçã-verde, usava New Wave no cabelo, assistia Armação Ilimitada, o Chaves era lançamento no SBT, usava caneta kilométrica, as meninas babavam por causa do Menudo, o escort XR-3 vermelho e conversível era o sonho de todo guri, o Michael Jackson – ainda escurinho – mandava ver no clipe do Triller, a gente ligava pra Rádio Caiobá FM pedindo “Menina Veneno” do Ritchie e dedicava pras gurias da sala ou do prédio, a gente gravava as músicas da Caiobá usando fitas BASF ou TDK trazidas do Paraguai pelos avós, todo domingo antes do Fantástico tinha o programa dos Trapalhões e o Didi cantava “A véia debaixo da cama”, “Rapaz Alegre” e “Papai, eu quero me casar; ó minha filha, você diga com quem”. A gente era feliz e sabia!
A Dani anotou todo esse meu relato e se despediu com um “Vlw, Tio. Ti adoru! Té+.” – e eu saí do msn com os Anos 80 na cabeça e com tantas lembranças quer fazem a gente mais vivo na medida em que as recordações vão surgindo. Tomado pelas recordações oitentistas, voltei ao ano de 1985.
Em 1985 eu tinha dez anos e fazia a quarta série do antigo primário no Colégio Positivo Júnior. Colégio caro, mensalidades pagas a duras penas pelo salário do meu pai e digo mensalidades porque éramos três filhos, eu e meus dois irmãos (aliás, ainda somos três).
Em 1985 as coisas eram diferentes, nem melhores, nem piores: diferentes. O Brasil era um país em crise de identidade, não sabíamos se éramos livres, não sabíamos se estávamos sob as rédeas curtas do antigo regime, não sabíamos nem sequer qual era o preço exato do pão, pois num dia era comum haver dois ou três aumentos.
Em 1985 as mulheres vestiam cores berrantes e usavam acessórios chamativos, com brincos enormes, colares de muitas voltas, lenços na cabeça, tudo isso por causa da Viúva Porcina, vivida pela Regina Duarte na novela Roque Santeiro (nessa novela surgiu, diante dos meus olhos maravilhados, a Patrícia Pillar, uma das coisas mais lindas que Deus botou nesse mundo).
O Presidente era para ser o Tancredo Neves, mas ele morreu e o Sarney assumiu. A gente passou por um plano econômico chamado Cruzado e faltava tudo nos supermercados. A gente tinha de chegar à fila do leite às seis horas da manhã para comprar um tal leite “B” que era uma boa porcaria, mas era só o que tinha (curiosamente, a embalagem do leite "B" era verde e branca).
Depois a gente ia para a fila da carne e rezava para conseguir um quilo de lombo agulha para fazer uma macarronada. Se não houvesse lombo agulha, disputávamos, a tapa, alguns frangos resfriados de pouco mais de um quilo para ver se levava alguma carne para casa. Isso era 1985.
Na minha sala, havia atleticanos e coxas: nem sequer um boca-negra ou um pinheirense. Éramos atleticanos ou coxas, numa divisão absolutamente igual. Entre os atleticanos, estavam: o Juliano Breda, o Rafael Justus, o David Peixoto, eu e outros cujos nomes agora me fogem, afinal já se vão 22 anos. Dentre os alviverdes, lembro que estavam: o Eduardo Silveira, o Juarez Sarraf e mais alguns colegas que a minha memória insiste em ocultar a identidade. Mas tudo era meio a meio, num grupo de dezoito guris.
O ano de 1985 não foi bom, nem ruim: foi diferente. Em agosto, o Coritiba foi campeão brasileiro, numa final que até hoje causa perplexidade geral. Na tarde de 1º de agosto de 1985, metade do Colégio foi com a camisa do Coxa e a metade que permanecia fiel ao uniforme era composta só de atleticanos. No Colégio havia atleticanos e coxas, nem sequer um representante do Colorado, nenhum fã das cores do Pinheiros.
Em 10 de novembro de 1985, o Atlético foi campeão paranaense. Na segunda-feira, metade do Colégio vestia a camisa Rubro-Negra e a outra metade, fiel ao uniforme, parecia não acreditar que na terra do campeão do Brasil, quem mandava agora era o time da Baixada. Era novembro e 1985 estava longe de se encerrar.
No Colégio havia um clima de disputa, como se as coisas não pudessem ficar daquele jeito. Era preciso – de uma vez por todas – decidir quem afinal era o melhor nas coisas relativas ao mundo da bola. Curitiba estava pequena demais para Atlético e Coritiba e duelos pareciam irromper em cada esquina. No Colégio não seria diferente e não foi.
Quase dezembro, uma das últimas aulas de Educação Física. Descemos de nossa sala até uma das quadras esportivas em dois grupos distintos e silenciosos. Dava para ver, claramente, que de um lado estávamos nós – os atleticanos - e de outro, eles – os coxas. Éramos todos amigos, mas dava para ver a divisão que se criara. Havia uma certa tensão no ar, caminhávamos de cabeças baixas, como se adiante nos aguardasse uma batalha daquelas que dividem a História em antes e depois de alguma coisa. Caminhávamos de cabeças baixas, como se olhássemos as pontas dos pés e nessas pontas reconhecêssemos as penas com as quais escreveríamos a História, não uma História qualquer, mas uma daquelas capazes de dividir a vida entre antes e depois de alguma coisa.
Na quadra, nem foi preciso dividir os times. De um lado, os atleticanos; de outro, os coxas. E quando o professor Fábio ia mandar um time ficar sem camisa, eis que ambas as equipes se livraram do agasalho escolar e se perfilaram envergando as camisas de seus clubes, prontas para entrar em ação. Foi bonito de ver: nós cobertos pelo sagrado manto rubro-negro; eles metidos na camisa do time verde onde uma estrela amarela brilhava diante de nossos olhos repletos de ódio e de inveja.
Eram dois exércitos frente a frente prontos para defender a honra, a camisa, a História, a tradição e o território. Eram dois exércitos cara a cara prontos para provar que suas cores eram na verdade a tradução do melhor futebol praticado naquele país chamado Brasil.
E o jogo começou. Os meninos, que até poucos instantes eram apenas meninos, converteram-se em monstros que percorriam, a largas passadas, cada centímetro de quadra. Eram monstros que disputavam, ferozmente, cada posse de bola, cada palmo de cimento. Eram monstros – já não havia meninos - e de suas bocas saiam os piores xingamentos, e saiam mordidas, e espuma, e saliva, e sangue, e cólera.
Quando um arco era finalmente vazado, ouviam-se urros próprios das hordas bárbaras, urros dignos dos visigodos, ostrogodos, vândalos, francos, lombardos, hérulos, suevos, anglos, saxões, alamanos, hunos, etc., etc., etc. (e chega a ser um milagre eu lembrar de tantos nomes assim).
Durante a batalha, os gols iam se sucedendo freneticamente, enquanto os jogadores, no limite das forças, davam tudo de si em honra das cores rubro-negras e alviverdes. Quando o Professor Fábio apitou o final da partida, todos caíram no chão, extenuados. Alguns sentiam cãibras horríveis, outros estavam com ânsia de vômito, muitos respiravam com dificuldade, nossas cabeças pareciam prestes a explodir e nenhum de nós reunia força suficiente para se colocar de pé e caminhar de volta a sala.
Ficamos ali por longos minutos, deitados de costas sobre a quadra de cimento, olhando o céu azul de Curitiba. Nós, os atleticanos, ficamos a imaginar por que é que Deus, ao pintar o céu de Curitiba, não usara o vermelho e o preto. Os coxas certamente pensaram a mesma coisa, só que em tons alviverdes.
No fim de tudo, houve empate. Em 1985, no país do futebol, havia uma cidade dividida entre Atleticanos e Coxas, entre campeões do Paraná e campeões brasileiros, entre meninos e guerreiros que sabiam que era preciso lutar em honra de seus times, de suas cores, de sua História, de sua Tradição, de seu território.
Naquela cidade dividida, meninos tinham na alma a força típica dos guerreiros e eles prometeram lutar, a vida inteira, para fazer suas cores triunfarem sobre as cores do adversário e em meio a tantas promessas, passaram-se vinte e dois anos, e a gente nem percebeu que aqueles meninos ficaram presos na História, presos num tempo em que havia sempre uma razão para lutar e para viver.
Às vezes, um daqueles meninos - já velho, passado dos trinta, cabelos brancos a se intrometerem na cabeleira que era preta e vasta, coração ferido por tantos amores e desamores, olhos mais experientes do que curiosos – vem escrever suas palavras, registro de um tempo vivido sob o signo do amor, da inocência, do sonho e da esperança.
Hoje, este menino velho vem defender as cores do seu querido Atlético; vem provocar outros meninos velhos; vem reacender na alma daquela piazada a chama de uma paixão que não morre – nem morrerá – e que dividia naquele ano de 1985 uma cidade entre Atleticanos e Coxas, entre campeões do Paraná e campeões brasileiros, entre meninos e guerreiros que sabiam que era preciso lutar em honra de seus times, de suas cores, de sua História e de sua Tradição.
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