Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Com os olhos do coração

20/05/2007


As histórias estão na vida. Vida real ou imaginária, pouco importa. A vida que acontece, a que não acontece, aquela que aconteceu aquém do esperado e aquela que superou todas as expectativas inspiram todas as narrativas, alegres ou tristes; duras ou poéticas; definitivas ou passageiras. Toda vida rende histórias.

O que a gente faz, quando escreve, é se apoderar da vida geral que nos rodeia - e que muitas vezes passa despercebida – e contá-la e registrá-la, para que nunca mais ela se perca, para que ela fique marcada em alguém e para que esse alguém a transmita para outro, numa espécie de corrente que vai unindo as pessoas pelo simples prazer de escrever, contar, ouvir, viver, testemunhar e inventar histórias. Toda história inspira a vida.

E estando a vida repleta de histórias, cabe àquele que pretende narrar ter olhos curiosos e vigilantes, além de ouvidos atentos, e uma alma pronta para vibrar ao menor toque de beleza. E ainda mais: fundamental é ter mãos dispostas a escrever, sem parar, mesmo que a fadiga e a repetição dos movimentos ameacem a continuidade do gesto que vai gerando caracteres em velocidade igual a do pensamento.

Foi nessa vida geral que meus olhos atentos conheceram Lúcia, a menina vinda de Santo Antônio da Platina, no final de 1981, e que chegara a Curitiba para poder tratar seu grave problema de visão. Lúcia, na época com 15, quase 16 anos, veio ficar no apartamento de sua tia, na Avenida Iguaçu, próximo da Formiga, sorveteria que há décadas está instalada naquela região.

Ficar no apartamento da tia era excelente para Lúcia, pois, além da companhia amabilíssima e quase materna da incansável senhora, Lúcia podia contar com a relativa proximidade do Hospital de Olhos – situado na Praça da Espanha – com a proximidade do Colégio Estadual para onde se transferira ao sair de Santo Antônio da Platina e com a facilidade de poder ir – sozinha – tomar sorvete na Formiga toda vez que lhe dava vontade.

Até março de 1982, eram essas as razões que mantinham Lúcia no apartamento da tia, além do vínculo de amor estabelecido entre elas, naturalmente. Iniciado o ano escolar, Lúcia foi se ambientando ao novo Colégio e por conta de suas dificuldades visuais teve a simpatia imediata dos colegas, em especial teve as simpatias da Renata e da Francine, meninas que adiante seriam importantíssimas para a biografia de Lúcia.

No final de uma manhã de aulas, Lúcia descobriu que a Renata e a Francine moravam no prédio vizinho ao da sua tia e a partir daí passaram a voltar juntas para casa numa trindade que só não era santa porque aos quinze, dezesseis anos, adolescente nenhum é santo, ainda bem. Pelo caminho, surgiam os mais variados assuntos.

Movidas pela curiosidade natural, as meninas perguntaram sobre as razões que tinham trazido Lúcia a Curitiba e obtiveram como resposta a tal doença que, iniciada em 1981, continuava progredindo e comprometendo a visão. Os médicos tinham dito que se a progressão se mantivesse seria necessário o transplante de córneas e o drama era ainda maior por atingir os dois olhos.

O quadro de Lúcia, em março de 1982, era de uma completa cegueira periférica e de um alcance visual que ia diminuindo como se Lúcia enxergasse através de um canudo que também tivesse o raio diminuído, a cada dia. Apesar disso, Lúcia levava sua vida normal, agora mais feliz por conta das amigas que não se desgrudavam nem um instante sequer.

Lúcia passou a freqüentar o prédio das meninas e as meninas não saiam da casa da tia de Lúcia. Nessas idas e vindas, Lúcia conheceu Ricardo, vizinho das amigas, estudante do segundo ano de Engenharia, na época com 19 anos de idade. E uma menina de 16 anos nunca encontra um guri de 19 anos em vão, nunca é por acaso. Ricardo era um guri pacato, tímido, bom filho, bom irmão e dedicado de corpo e alma às suas duas paixões: o Atlético Paranaense e a Engenharia.

Já estávamos em abril de 1982 e ficar no apartamento da tia era excelente para Lúcia, pois, além da companhia da dedicada senhora, Lúcia podia contar com o Hospital de Olhos – situado na Praça da Espanha – com o Colégio Estadual para onde se transferira ao sair de Santo Antônio da Platina, com os sorvetes da Formiga, com a vizinhança das duas melhores amigas e – mais do que tudo isso – com a vizinhança do Ricardo, o guri que fazia Engenharia e que ela acabara de conhecer.

Numa tarde do final de abril, Lúcia e Ricardo acabaram ficando a sós na sala do apartamento de Renata, pura armação das três gurias para cima do tímido Ricardo. A Lúcia – jogando charme – insinuava-se para ele de todas as formas, mas o guri parecia não perceber as reais intenções da menina. Lá pelas tantas, Lúcia lançou mão de um dos planos arquitetados com as amigas e, confessando-se péssima estudante de Matemática, encomendou algumas aulas particulares a serem ministradas pelo Ricardo, na casa da tia de Lúcia. O guri aceitou. Mordera a isca.

Assim, no último sábado daquele mês, ele compareceu ao apartamento da tia de Lúcia carregando os livros de Geometria, Álgebra, Desenho Geométrico, fora os esquadros, réguas e compasso que fazia questão de portar afinal de contas um Engenheiro não poderia ser surpreendido pelo desconhecido, era preciso estar sempre preparado.

Lúcia recebeu o guri, apresentou-o para a tia e depois ocuparam a mesa da sala para as duas horas de aula que estavam programadas. Ricardo não percebia que Lúcia estava muito pouco interessada na Matemática e que ele era de fato a grande razão daquelas aulas. Concentrado, ia explicando à moça que “uma maneira de obter o valor do seno e cosseno de alguns ângulos que aparecem com freqüência em exercícios e aplicações, sem necessidade de memorização, é através de simples observação no círculo trigonométrico” – e ela nem aí para isso tudo.

Ao final da aula, Ricardo perguntou se ela tinha alguma dúvida, ela disse que sim e logo perguntou: “Você já se apaixonou alguma vez?” – o guri ficou vermelho, quase a ponto de explodir. Tentando não encarar Lúcia, Ricardo tentou dissimular, se fazer de durão, e disse que a única paixão dele era o Atlético Paranaense. E até certo ponto era verdade, pois, na realidade, Ricardo nunca havia namorado, aliás, nem sequer tinha beijado uma menina na boca, apesar de já ter 19 anos.

Lúcia que tinha vindo de Santo Antônio da Platina, não conhecia direito o Atlético e achou estranho alguém se apaixonar por um time de futebol. “Apaixonado pelo Atlético? Mas assim não é paixão! Time de futebol não conta. Eu quero saber se você já se apaixonou de verdade, por uma moça, por uma menina!”. Diante das considerações de Lúcia, Ricardo se defendeu dizendo que era possível, sim, se apaixonar por um time de futebol e que ele ia mostrar isso pra ela quando a levasse ao Joaquim Américo ver um jogo do Atlético.

O convite foi feito e, na primeira partida de maio de 1982 dentro da Baixada, lá estavam eles, sentados na arquibancada, lado a lado. Ele querendo provar a ela que era possível se apaixonar por um time de futebol; ela querendo provar a ele que paixão mesmo é o amor de uma mulher e de um homem, ou de um guri e uma menina, como ainda era o caso deles.

O estádio aos poucos foi se enchendo, principalmente por causa da excelente campanha que o Atlético vinha cumprindo. De repente, o setor onde estavam ficou lotado e isso aumentava a sensação de estar – de fato – dentro de um estádio de futebol. Lúcia, apesar de seu problema de visão, conseguia enxergar quase tudo, principalmente as bandeiras vermelhas e pretas que foram os elementos que inicialmente mais lhe chamaram a atenção. Depois, encantou-se com a entrada do time, o talco que se espalhava pelo ar, e o uniforme rubro-negro a contrastar com o verde do gramado da Baixada. Essa festa de cores e de formas foi um espetáculo inesquecível aos olhos de Lúcia.

Ricardo, como sempre, estava empolgado só de ver o time em campo e sentia que aquele ano seria para ele um grande ano, inesquecível como 1970, ano em que tinha visto o Atlético campeão paranaense, mas depois, tudo virou jejum. Quase 12 anos e nada de títulos. Começou o jogo e o Atlético partiu para o ataque. Não demorou muito e saiu o primeiro gol, feito pra quebrar o gelo. Ricardo e Lúcia se abraçaram nas arquibancadas do velho estádio.

Como a arquibancada estava cheia, os dois foram ficando cada vez mais grudados e pouco depois veio o segundo gol. Foi aí que entrou em campo o destino. Ele, que queria provar a ela ser possível se apaixonar por um time de futebol, acabou se rendendo a ela que queria provar a ele que paixão mesmo é o amor de uma mulher e de um homem, ou de um guri e uma menina, como ainda era o caso deles. E os dois, no meio da galera rubro-negra, deram um beijaço daqueles de cinema e nunca mais se desgrudaram.

Naquela noite, Lúcia confidenciou às amigas Renata e Francine que, na hora do beijo, sentiu o coração quase sair pela boca, sentiu as pernas amolecerem e, se não fosse o Ricardo ter segurado bem forte, era capaz de ter caído na arquibancada. Confidenciou às amigas que aquele tinha sido seu primeiro beijo de verdade e que, por isso, nunca ia esquecer aquele tal estádio Joaquim Américo, palco do momento mais bonito vivido por ela até aquele mês de maio de 1982.

Ricardo, na mesma noite, deitou-se na cama, ligou o rádio e ouviu uma canção do Kleiton e Kledir que lhe caía como uma luva, ao dizer assim: “Dona senhora meia noite eu canto/Essa canção anormal/Dona senhora essa lua cheia/Meu corpo treme/ Que será de mim?” – Ricardo estava apaixonado por Lúcia e seria correspondido.

Começaram a namorar em maio de 1982. Naquele ano, viram juntos o Atlético ser campeão em cima do Colorado. Naquele domingo de outubro, Ricardo encheu a Lúcia de beijos, atribuindo a ela boa parte da conquista atleticana. “Você me dá sorte, Lúcia. Você me dá sorte”. E era uma felicidade recíproca, daquelas que deixa qualquer um feliz só de estar perto.

O tempo passava e o quadro de Lúcia se agravava. O médico, em janeiro de 1984, sentenciou: “É necessário o transplante, nos dois olhos”. Ricardo e Lúcia foram a Belo Horizonte e Lúcia recebeu as duas córneas. Em agosto de 1984, nova intervenção. Mais outra em fevereiro de 1985 e a última em março de 1986. Não se pôde fazer mais nada. Lúcia estava cega. Casaram em julho daquele mesmo ano. Ricardo, já formado, conquistara o posto de Engenheiro numa estatal daquelas de fazer brilhar os olhos de qualquer recém-formado.

Saíram de Curitiba por força de uma transferência de Ricardo e foram morar no Oeste do Paraná. Em setembro de 1987, nasceu a Renata; em junho de 1989, a Francine. Ricardo, mesmo a distância, alimentou seu amor cada vez maior pelo Atlético e, toda vez que vinha a Curitiba, assistia aos jogos do Furacão e sentia uma saudade enorme daqueles tempos em que morava perto da Baixada e ia aos jogos religiosamente.

Renata e Francine, nascidas no Oeste, torciam pelo Grêmio, mas achavam muito legal a história que havia unido Ricardo e Lúcia, principalmente o fato de eles terem dado o primeiro beijo da vida dentro de um estádio de futebol, na frente – ou no meio – de milhares de pessoas. Lúcia, ao lembrar da história, abria um sorriso enorme e entregava “Senti o coração quase sair pela boca, senti as pernas amolecerem e, se não fosse o pai de vocês ter segurado bem forte, era capaz de eu ter caído na arquibancada”.

Quando as filhas perguntavam pro Ricardo se a coisa tinha sido mesmo assim, ele ficava vermelho, se atrapalhava todo e confessava: “Naquele dia eu já fui pro estádio louco pra beijar a mãe de vocês, mas faltava um pretexto. Veio o primeiro gol e eu quase ataquei, mas fiquei com medo. Quando saiu o segundo, não tive dúvida e parti pro ataque. O Atlético me encheu de coragem e aquela galera toda reunida era um escudo perfeito pra eu beijar a Lúcia. Beijei e olha que foi um beijo de uns dois minutos”.

E ouvindo aquilo as gurias davam risada, pois, aquela história de amor não era só da Lúcia e do Ricardo, mas era, sobretudo, a história de amor da Lúcia, do Ricardo, da Renata, da Francine, da tia da Lúcia e das amigas do Colégio. Aquela história de amor era também do Atlético Paranaense, era da Fé e era da Vida, pois todas as histórias estão na vida e toda vida rende grandes histórias.

No ano passado, a família veio a Curitiba para que o Ricardo resolvesse alguns assuntos de trabalho. Como de costume, Ricardo foi se informar se haveria jogo do Atlético nos dias em que ficariam por aqui. Haveria. Atlético e Pachuca, dia 15 de novembro, na Arena da Baixada. Em conluio com as filhas, Ricardo comprou quatro ingressos e, após o almoço do dia 15, botaram a Lúcia dentro do carro sob o pretexto de dar um passeio por Curitiba.

Chegaram ao estádio. Lúcia, ao ouvir a festa da galera, percebeu onde estava e foi deixando a emoção tomar conta de sua alma. Já acomodados na arquibancada, Lúcia quis saber se o estádio ainda era o mesmo daquele mês de maio de 1982. Ricardo garantiu que tudo ali havia mudado e que só o amor dele por ela ainda era o mesmo. E para provar, deu um beijaço na Lúcia, daqueles de cinema, enquanto a galera explodia ao redor num gigantesco carnaval feito de tons vermelhos e pretos.

Tons vermelhos como os corações apaixonados de Lúcia e Ricardo; tons pretos da cor dos olhos de Lúcia de onde brotavam lágrimas sinceras, lágrimas fartas, lágrimas puras, pois Lúcia enxerga com a alma coisas que os olhos muitas vezes não conseguem ver.


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