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Rafael Lemos
Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.
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Chorando de barriga cheia
13/05/2007
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Abrão Linco e Greice Queli são meus amigos. Eles são filhos de uma grande amiga que é a Jandira e que trabalha conosco há quase 30 anos. Os três na verdade são parte da nossa família: a Jandira é pra mim uma irmã e os dois figuras são meus sobrinhos, do coração.
O Abrão Linco está com treze anos, a Greice Queli com onze e eles são – como a maioria da piazada dessa idade – atleticanos até o último fio de cabelo. Eu me divirto demais com esses dois. Adoro chateá-los por causa dos nomes americanizados e por causa da grafia aportuguesada que acabaram ganhando.
“Onde se viu alguém se chamar Abrão Linco?” – eu provoco só pra ver o guri gaguejar tentando me explicar que o nome dele foi uma homenagem ao grande político norte-americano. Ele diz: “Pô, Rafael, tá por fora, hein? Abrão Linco foi presidente dos Estados Unidos! Se liga na fita, maluco, o cara era importantão, que nem eu!”.
Aí eu cutuco de volta: “Mas se era pra homenagear americano famoso deviam ter te colocado o nome de Elvis Presley ou Frank Sinatra, não acha?” – e aí o guri fica pensando, pensando e conclui que Abrão Linco até que está bom demais e pior seria se chamar George W. Bush.
“Sempre tem como piorar”: é isso que eu mostro pro guri quando a gente fica filosofando a respeito do seu nome meio diferentão.
A Greice Queli, como toda menina, é cheia de frescuras. Esses dias eu peguei a mochila dela, abri o penal e de lá fui tirando um monte de coisas que nem tinham a ver com a aula. Tinha gloss, tinha espelhinho, lápis de passar nos olhos pra ficar igual Emo e até as canetas que tirei de lá eram cheias de esquema, cheias de glitter, purpurina, nada que prestasse pra se fazer uma prova ou uma redação de verdade.
Perguntei pra ela: “Greice Queli, não tem caneta Bic azul nesse estojo? Você faz prova como?” – e ela respondeu: “Tá por fora, Rafa, a professora da minha escola deixa a gente escrever com caneta glitter. Não dá nada!” – e eu fiquei olhando pra ela com aquela cara de “onde é que esse mundo vai parar”.
Eu sempre cobro dos dois empenho nos estudos, mas sabe como é que é: a gurizada nessa idade não quer nada com o basquete. O Abrão Linco “afanou” umas vinte playboys clássicas da minha coleção e levou lá pra casa dele me garantindo: “Rafa, é tudo pro meu tio, mas ele devolve, belê?” – e eu, fingindo acreditar, respondi: “Beleza, meu tio!”.
O guri me levou até a edição de dezembro de 1987 com a Luciana Vendramini! Mas é a idade, já passei por isso e, até hoje, não devolvi pro meu primo a revista da Andréa Veiga, de setembro de 1988 (e nem vou devolver!).
A Greice Queli esses dias me pediu quinze reais pra ir ao shopping com as amigas, pois lá estariam o Gui, o Léo, o Nando e o Ricardo, todos eles fantásticos segundo palavras da própria Greice. Dei a graninha pra ela e, só pra tirar um sarrinho, adverti: “Ó lá hein, não quero ser tio-avô antes dos 40!” – ela ficou vermelha e disparou: “Ai, Rafa, cala a boca!” – e eu fiquei morrendo de rir da cara dela.
Vida simples, vida boa, amor em estado puro. A criançada faz muito bem pra gente, porque nos faz enxergar que é preciso pouco pra ser feliz de verdade. Esses dois, que sempre tiveram uma vida difícil, me ensinam muitas coisas e me fazem reaprender outras tantas lições. A gente até que tenta fazer da vida deles algo mais ameno, mas nem sempre é possível. Pai alcoólatra, carência material e afetiva, humilhações vindas de gente sem coração e uma mãe que tem de se desdobrar em mil para poder criar os filhos. Vida sofrida, vida dura, pobreza em estado permanente.
Os dois, que sempre tiveram uma vida difícil, me ensinam muitas coisas e me fazem reaprender outras tantas lições. Dia desses, eles vieram de mansinho perto de mim e eu logo percebi que me seria feita alguma proposta. Perguntei: “Fala, Abrão Linco, que é que tá pegando?” – o guri, tentando dissimular, disse: “Nada, Rafa!”. Logo atrás, a Greice Queli estalava os olhos, cheia de expectativa, louca pra ver no que daria a tal conversa recém iniciada.
O Abrão Linco, meio sem jeito, entregou o serviço: “Rafa, você leva a gente almoçar hoje no McDonald´s? A gente tá com vontade de experimentar o Big Tasty!” – e a Greice Queli olhando tudo com olhos de “leva, leva!”. É claro que eu aceitei a proposta, mas antes ainda perguntei: “E as notas?” – “Todas azuis, Rafa!” – disse a dupla em sintonia como se fossem Sandy e Júnior.
Então, fomos nós em busca do sabor – para eles inédito – do Big Tasty (hambúrguer de 150 gramas, 3 fatias de queijo, tomate, alface, cebola e molho especial num pão com gergelim). Chegando ao McDonald´s, deixei a dupla à vontade para fazer o pedido tão esperado. Com inicial timidez, foram pedindo este e aquele lanche, e pouco tempo depois – já mais ambientados – iam instruindo as moças a “tirar o gelo daqui, a tirar a maionese dali, a reforçar a alface” e eu, tio orgulhoso, ia me deliciando ao ver tanto entusiasmo da dupla.
Na minha vez, pedi o Big Tasty e mais um copo de coca-cola. Minutos depois, ocupamos uma das mesinhas para enfim almoçarmos. Eu - pela vigésima vez - ia comer o meu sanduíche; eles - pela primeira vez - iam saborear o Big Tasty. Quando eu já me preparava para devorar o meu lanche, o Abrão Linco propôs que fizéssemos uma pequena oração.
Manja quando dá um nó na garganta da gente? Pois foi isso que me aconteceu naquele instante. E assim, antes de almoçarmos, agradecemos a Deus a nossa refeição. Naquele momento eu percebi há quanto tempo eu não agradecia a Deus o meu alimento, o meu emprego, a minha saúde e a minha vida.
Os dois saboreavam cada mordida do sanduíche e era como se nunca tivessem provado coisa mais gostosa. Eu, concentrado na dupla, ia comendo meu lanche e, a cada mordida que dava, eu ia ficando menor e menor.
A cada mordida eu constatava o quanto eu era um babaca, um exigente, um arrogante e um mal-agradecido. A cada mordida eu percebia o quanto tinha deixado de agradecer a Deus por tudo que já me fora dado nesta vida. Percebia o quanto eu tinha buscado as felicidades materiais - sempre maiores e mais exigentes – em detrimento das coisas simples da vida, sempre mais puras, acessíveis e sinceras.
Terminado nosso almoço, eles me pediram que levasse duas batatinhas grandes: uma para a mãe deles – a Jandira – outra para a minha mãe, dona Cleonice. “A mãe e a vó Cleonice gostam dessa batata, Rafa!” – argumentou a Greice Queli. Manja quando dá um nó na garganta da gente? Pois é...
Na volta para casa, eles foram comentando a experiência que tinham acabado de viver. Falavam sem parar, ainda excitados pela inédita refeição. Eu, que já sou calado, ia pensando em tudo aquilo que acabara de acontecer. Eu ia pelo caminho digerindo idéias e sensações, mais do que digerindo o lanche.
Para mim tinha sido o vigésimo sanduíche, para mim era uma refeição normal, protocolar, automática, quase que sem sabor. Tão comum que eu nem me dava o trabalho de agradecer a Deus. Para eles, tinha sido a maior de todas as refeições, inesquecível, fantástica, de sabor quase celestial. Tão especial que Deus não poderia ficar fora daquela mesa, tão especial que Deus foi lembrado e honrado através de uma comovida e sincera oração.
Eu, que já sou pensativo, ia calado pelo caminho avaliando tudo aquilo que acabara de acontecer. E concluí que a fartura enche a barriga e esvazia o coração. A fartura infla o ego e esvazia a alma. A fartura levanta a cabeça e rebaixa os bons pensamentos. A fartura faz crescer a ganância e diminuir a gratidão; faz surgir os insatisfeitos ao aniquilar qualquer possibilidade de satisfação.
Arena da Baixada, CT do Caju, 12º ano consecutivo na Primeira Divisão do Futebol brasileiro, estrela prateada, estrela dourada, final da Libertadores, semifinal da Sul-Americana, jogador na Seleção brasileira pentacampeã do Mundo, maior artilheiro da história de uma edição de brasileirão, cinco títulos estaduais na última década, afirmação nacional do nome, aparição continental do nome, contas em dia e uma torcida crescente e apaixonada. Barriga cheia de triunfos; coração vazio de gratidão.
Entre 1950 e 1980, dois títulos paranaenses e uma fome tão grande que quando a gente ganhou o campeonato de 1982 – apenas um estadual – parecia que a cidade nunca mais ia despir o manto vermelho e preto. Nas ruas, nas esquinas, nos bares, nas igrejas: tudo era Atlético. A euforia virou o ano e ganhou fôlego em 1983. Tudo era amor ao Atlético e por isso conquistamos o 3º lugar do Brasil e o bicampeonato estadual em cima do time verde, dentro do estádio verde, contra tudo, contra todos e inclusive contra o apito.
Choramos a perda do tri naquela noite triste de 1984 quando fomos superados pelo Pinheiros no estádio verde. Voltamos a triunfar em 1985 dentro da velha Baixada feita então de tijolos expostos onde o musgo aparecia farto entre as frestas. Fomos vice do Pinheiros em 1987, campeonato marcado por manobras de bastidores que beneficiaram o time das piscinas e do baile do Havaí.
Demos o troco no time alvi-celeste em 1988, dentro do Pinheirão. Voltamos a ganhar o título em 1990, em cima do time verde, dentro do estádio verde, contra tudo e contra todos, no ano em que fomos Atlético de corpo e alma. Nunca houve tanto envolvimento emocional entre time e torcida como naquele ano de 1990 e só quem viveu sabe dizer que sentimento era aquele.
Depois, oito anos sem títulos – exceção feita à conquista da Série B-95 – período de aridez que nos fez ser mais e mais atleticanos. Nas dificuldades, sempre crescemos. No período de 1991 a 2000, tivemos fome de Atlético e fomos guerreiros em busca de conquistas e valorizávamos cada triunfo, saboreávamos cada vitória. E a barriga encheu demais. E barriga cheia é coração vazio. Veio a fartura!
A fartura infla o ego e esvazia a alma. A fartura levanta a cabeça e rebaixa os bons pensamentos. A fartura faz crescer a ganância e diminuir a gratidão; faz surgir os insatisfeitos ao aniquilar qualquer possibilidade de satisfação. É hora de a gente voltar a ter fome de Atlético como a gente tinha em 1982 e em 1990; da mesma maneira que os meus amigos Abrão Linco e Greice Queli têm fome de Big Tasty.
Arena da Baixada, CT do Caju, 12º ano consecutivo na Primeira Divisão do Futebol brasileiro, estrela prateada, estrela dourada, final da Libertadores, semifinal da Sul-Americana, jogador na Seleção brasileira pentacampeã do Mundo, maior artilheiro da história de uma edição de brasileirão, cinco títulos estaduais na última década, afirmação nacional do nome, aparição continental do nome, contas em dia e uma torcida crescente e apaixonada.
Vida simples, vida boa, amor em estado puro. A criançada faz muito bem pra gente, porque nos faz enxergar que é preciso pouco pra ser feliz de verdade. E nós, atleticanos, somos felizes de verdade, embora existam muitos que não consigam enxergar meio palmo diante do nariz.
Precisamos melhorar, concordo. Mas duvidar de nossa grandeza e apostar no fracasso - como alguns atleticanos estão fazendo - é desconhecer nossa História, é menosprezar nossa força, é chorar de barriga cheia. E isso não dá pra aceitar, nem dá pra entender.
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