Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Onde nascem os Cajus

30/04/2007


Tem coisas na vida da gente que não dá para explicar. Vejam só o meu caso: quando eu era pequeno, em vez de jogar na linha, como faziam todos os outros meninos, eu gostava mesmo era de jogar no gol.

E quando eu falo "jogar no gol" entendam que eu defendia, a duras penas, o espaço demarcado por dois tijolos, dois chinelos, duas mochilas, uma pilha de livros e cadernos em cada lado, tudo enfim que simulasse a presença imprescindível dos dois postes laterais.

O travessão era só um detalhe, mas costumava "ficar" na linha imaginária fixada por nós obedecendo ao seguinte critério: "Rafael, pule o máximo que você puder e pule com os braços levantados. Tá vendo? Até aí vale, daí pra cima é fora."

Quando havia uma parede era mais fácil, pois a gente botava um chinelo de cada lado e riscava o travessão a tijolo, ou mesmo a carvão roubado de dentro da churrasqueira, para desespero do síndico. E a bola corria solta pelo pátio de cimento do prédio.

E como eu já disse, gostava de ser goleiro, enquanto o resto da piazada se divertia em ser atacante. "Eu sou o Dinamite", "Sou o Zico", "Eu sou o Serginho Chulapa", "O Casagrande sou eu, pô", "Você sabe que eu sou o Éder, então escolhe outro" - e eu sempre era o "Roberto Costa".

Certo dia, surgiu para jogar lá no prédio um guri com a camisa do Atlético. Olhei-o meio de lado, pois não sei quanto a vocês, mas eu tenho um ciúme doentio do meu Atlético, como se o Atlético fosse só meu, e não de um milhão de atleticanos.

Pois bem, o guri surgiu lá no prédio com a camisa do Atlético e na hora de dividir os times e escolher o nome de cada jogador que seríamos, o piá me veio com a novidade: "Eu sou o Roberto Costa".

Ah, senhores, o pau ameaçou fechar ali mesmo! Eu devia ter quase sete anos, ele também; mas sei que lhe disse, de cara fechada: "O Roberto Costa sou eu e você que seja o Rafael, o Raul, o Paulo Victor, mas o Roberto Costa sou eu!" - e o caldo engrossava à medida que o menino se recusava a aceitar minha "proposta".

De repente, ouviu-se uma voz que tentava a pacificação: "Fica um Roberto Costa em cada gol e aquele que for melhor ganha o direito de ser o Roberto Costa para sempre". Lançado o desafio, eu e o menino nos olhamos pálidos de espanto, nem tanto pelo duelo, mas aquela expressão "para sempre" parecia pesar demais em nossos ombros, pois "para sempre" era tempo demais e tinha o lado de que o perdedor teria de ser "Rafael, Raul ou Paulo Victor para sempre" já que só o vencedor poderia ser o eterno "Roberto Costa".

Mas o desafio foi aceito, pois era o único modo razoável de se resolver aquele impasse futebolístico. E o jogo começou.

Logo de cara o time deles veio para cima e eu fui exigido num foguete cruzado que bateu na ponta dos meus dedos e bateu na quina do tijolo lhe tirando uma boa lasca. Eu era o Roberto Costa!

No contra-ataque, nosso atacante recolheu a bola, caminhou de cabeça erguida, entrou na área e fingiu que ia chutar. O goleiro se atirou ao chão e, quando ia ser driblado, recuperou-se a tempo de se arrojar nos pés do goleador e evitar o gol quase inevitável. O piá também era o Roberto Costa.

Naquela tarde, o jogo transcorreu assim: milagres de um lado e de outro, escoriações de um lado e de outro e unhas roxas, mãos doloridas, joelhos encardidos e uma vontade de ser o melhor "Roberto Costa" que a gente podia ser.

Já estávamos exaustos quando aconteceu o lance capital: ao sair numa bola, cometi pênalti ao derrubar o atacante adversário. Não teve jeito, o pênalti havia sido marcado, o jogo devia estar 7 a 7 e aquele seria o último lance de um jogo pra lá de equilibrado.

Se eu tomasse o gol, diante de tanto equilíbrio, o piá forasteiro seria proclamado "o Roberto Costa eterno" e daí eu teria de ser outro goleiro e para mim isso seria inaceitável. A bola tava na cal, agora era comigo.

Quem veio para a cobrança foi um guri magrão, o "Casagrande", e ele era craque, tinha dez anos, estava na quarta série (e ai de mim que mal tinha aprendido a ler). Bola na cal, o guri tomava distância e nessas frações de segundo me lembrei de um jogo que tinha acontecido na semana anterior, no Couto Pereira.

Era quarta-feira à noite, o Atlético enfrentava o Colorado em rodada do Campeonato Nacional. Lembro-me que o Atlético venceu por 2 a 1, mas lá pelas tantas houve um momento crítico, pois o Colorado tinha pênalti para bater. Ouvindo o lance, virei para o meu pai e disse: "Agora é gol deles, não vai ter jeito!" - ao que o meu pai respondeu: "Que nada, nós temos o Roberto Costa".

Fechei os olhos e cobri a cabeça com o travesseiro - como se aquele gesto pudesse impedir a ocorrência de uma notícia ruim. Logo depois, ouvimos pelas ondas da Rádio Atalaia a emocionada narração longa e efusiva: "Defendeu Roberto Costa!". Nós tínhamos o Roberto Costa!

Enfim, veio para a cobrança o guri magrão, o "Casagrande", e ele era craque, tinha dez anos, estava na quarta série e eu que mal tinha aprendido a ler pensei comigo mesmo: "Eu sou o Roberto Costa".

Daí escolhi o canto certo, me arrojei num salto mágico, defendi a bola no cantinho, depois meti uma bicuda na bola que passou por cima do muro e o jogo acabou ali mesmo, enquanto eu corria berrando: "Eu sou o Roberto Costa, eu sou o melhor Roberto Costa, eu sou o Roberto Costa, para sempre". Grande jogo, grande tarde, grande infância: saudades!

Depois desse jogo, houve outros. Depois desses outros, eu cresci. Quando a gente cresce, a gente é só a gente mesmo, mas uma coisa eu devo confessar a vocês: no último domingo, depois de assistir à exibição do jovem goleirão Guilherme contra o Paraná Clube, me deu uma vontade danada de voltar a ser criança, apesar da tristeza pela desclassificação.

Depois de assistir ao partidaço do excelente Guilherme (guardem esse nome), me deu uma vontade danada de voltar a ser menino, para poder jogar no gol feito de tijolos, de chinelos, de mochilas e de cadernos. Para poder olhar firme na cara dos adversários e lhes dizer, de fronte alta: "O Guilherme sou eu e vocês que sejam o Rogério Ceni, o Clêmer, o Dida e até o Flávio, mas o Guilherme sou eu, o Guilherme sou eu!"


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