Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

A esperança é vermelha e preta

17/04/2007


1968: O ano que não acabou, marcado na história mundial e na do Brasil como um momento de grande contestação da política e dos costumes. O movimento estudantil celebrizou-se por protestar contra a política tradicional, demandando por novas liberdades. O radicalismo jovem expressou-se no lema "é proibido proibir". Esse movimento, no Brasil, associou-se a um combate mais organizado contra o regime: intensificaram-se os protestos mais radicais, especialmente o dos universitários, contra a ditadura. Por outro lado, a "linha dura" dos militares providenciava instrumentos mais sofisticados e planejava ações mais rigorosas contra a oposição.

A contra-ofensiva militar vem através do Ato Institucional nº. 5, AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva. O AI-5 foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira (1964-1985) e vigorou até dezembro de 1978. Produziu uma série de ações arbitrárias de efeitos duradouros. Definiu o momento mais duro do regime, dando poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados. Foi nesse cenário de exceção que muitas histórias de vida foram contadas e outras tantas escondidas.

16 de abril de 1968: eclode a greve de ocupação na siderúrgica da Belgo Mineira (1.200 trabalhadores), em Contagem - MG, reivindicando 25% de aumento salarial. No terceiro dia, o movimento grevista se expandiu paralisando em torno de 16 mil trabalhadores. Ao final, a luta foi vitoriosa, com o governo assinando um decreto dando 10% de aumento. A vitória em Contagem encorajou Osasco-SP, cidade onde morava Maurício, um jovem de vinte e dois anos, metalúrgico da Cobrasma (maior empresa metalúrgica da região, na época).

16 de julho de 1968: os então 1.782 trabalhadores da Cobrasma se recusam a entrar na fábrica, apoiados pelo Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e Região. Logo, a mobilização se espalha pela Brown Boveri, Braseixos, Cimaf, Lonaflex, Barretos Keller, Fósforos Granadas e outras empresas da cidade.

À noite, os trabalhadores que ocupavam a Cobrasma foram expulsos da fábrica pela Força Pública. Os soldados também cercaram todas as fábricas que aderiram à mobilização e bloquearam as entradas e saídas de Osasco.

Muitos trabalhadores foram presos e torturados. O sindicato sofreu intervenção da ditadura, a diretoria foi cassada. A perseguição fez com que muitos diretores recorressem ao exílio e a clandestinidade. Mesmo assim, os trabalhadores conseguiram reverter a ameaça de demissão aos envolvidos na greve. Conquistaram também reajuste entre 15% e 20%. A mobilização e a repressão fizeram da greve de 1968 um dos símbolos da luta contra a ditadura militar.

A partir dessa vitória operária, Maurício se enche de coragem: o ano é 1969. A guerrilha urbana começa a se organizar, formada por jovens idealistas de esquerda. A Junta Militar escolhe o novo presidente: o general Emílio Garrastazu Médici. Seu governo é considerado o mais duro e repressivo do período, conhecido como "anos de chumbo".

A repressão à luta armada cresce e uma severa política de censura é colocada em execução. Jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes, músicas e outras formas de expressão artística são censuradas. Muitos professores, políticos, músicos, artistas e escritores são investigados, presos, torturados ou exilados do país. O DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) atua como centro de investigação e repressão do governo militar. Ganha força no campo a guerrilha rural, principalmente no Araguaia. A guerrilha do Araguaia é fortemente reprimida pelas forças militares.

Maurício está em São Paulo, mora no aparelho do PC do B, na Rua Pio XI, e agora é conhecido como Fausto, pois era praxe todos os guerrilheiros serem rebatizados ao entrarem para a luta armada. Nessa época, todas as ações e os pensamentos de Fausto estão voltados e absorvidos pela luta armada e a única válvula de escape que lhe sobra são os jogos do Corinthians, no estádio do Pacaembu. Fausto ia aos jogos do Corinthians, apesar da censura dos demais companheiros de aparelho. "Você é louco, Fausto! A dura te pega e aí você vai pôr tudo abaixo, porra! Pára com essa merda de Corinthians! Você não vê que o futebol é mais uma manobra desses generais que estão acabando com o Brasil? Pára com essa merda, Fausto! A gente tem uma guerra pra vencer e não tem espaço pra Corinthians nessa trincheira! Você vai botar tudo abaixo, seu viado!" - protesto à parte, Fausto continua indo aos jogos do Corinthians, no Pacaembu, pois era a única coisa que ainda lhe sobrara dos tempos de infância, era a única coisa que lhe dava alegria, era a única coisa que sobrara dos tempos em que era Maurício. Ir aos jogos do Corinthians era uma forma de recobrar a própria identidade.

4 de novembro de 1969, o Santos de Pelé enfrenta o Corinthians no Pacaembu. Fausto entrega o ingresso ao bilheteiro, passa a catraca e percebe que está sendo seguido por dois homens. Tenta se misturar na torcida, mas é detido. Tenta se livrar sacudindo os ombros com força, mas é vã qualquer tentativa: "Caiu, Maurício! Ou é Fausto?Afinal como é que a gente chama um comunista de merda como você? Lembra da Cobrasma? Lembra de Osasco? Hoje você vai lembrar até daquilo que você não viu, seu viado!".

Na saída do estádio, botaram um capuz preto no Fausto, jogaram-no no fundo de uma Veraneio e ele foi levado para depoimento no DOI-Codi, nas dependências do II Exército. Maurício, Fausto, Mentiras, Fatos, Mundo em preto e branco: assim era o Brasil daquele tempo. Corinthians e Santos: preto e branco. Capuz, preto; luz branca na cara. Depois afogamento e o corpo fritando na horrível máquina de choques apelidada de "pimentinha". Portas batendo, gritos ecoando no prédio. De repente, o rádio tinha o volume aumentado no corredor. Gritos abafados pelo noticiário radiofônico. Mortes, Mundo de Ponta Cabeça, Pau-de-Arara: uma barra de ferro atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, tudo colocado entre duas mesas, ficando o corpo pendurado a cerca de 20 ou 30 cm do solo e tome mais seus "complementos normais": choques, palmatória e afogamento.

Setembro de 1970: dez meses depois de sua captura, Fausto é colocado em liberdade. Vinte quilos mais magro, queimaduras espalhadas pelo corpo, falhas de memória por conta dos choques recebidos nas orelhas, nuca e têmporas e a alma estilhaçada. Já não era Maurício, já não era Fausto, já não era nada. Não podia voltar a Osasco, o aparelho de São Paulo havia sido estourado, os parentes não iam querer o risco de acolher um subversivo. Maurício, Fausto, Mentiras, Fatos, Mundo em preto e branco: a última recordação do mundo exterior era aquele Corinthians e Santos: preto e branco. Depois, capuz, preto; luz branca na cara; afogamento e o corpo fritando na horrível máquina de choques apelidada de "pimentinha".

Passou na casa dos pais de um companheiro de aparelho e deles conseguiu dinheiro suficiente para comer, comprar algumas roupas e pegar um ônibus para Curitiba. Curitiba era a cidade grande mais próxima dali, já que o Rio de Janeiro seria exposição demais para alguém recém saído da tortura. Fausto seguiu para Curitiba.

13 de setembro de 1970: Fausto desembarca na Rodoviária de Curitiba, vindo em busca de uma nova vida. O Atlético Paranaense acabara de conquistar o título de Campeão Paranaense de 1970, depois de um jejum de 12 anos. A cidade estava em festa. As ruas tomadas por um carnaval em vermelho e preto e nem mesmo a chuva que caía forte arrefecia os ânimos do povão atleticano.

Caminhando pela cidade, Fausto chegou à Boca Maldita, local onde a festa pulsava com maior vibração. Fausto ainda trazia nos olhos as imagens do seu Mundo preto e branco, do seu Mundo de ponta cabeça, do seu Mundo de choques, afogamentos e palmatória.

De repente, Fausto se encantou ao perceber a quantidade de vermelho que fora acrescentada às bandeiras, antes apenas pretas e brancas. Era um vermelho que - ao lado do preto - tomava conta de tudo, como se outra vida se anunciasse, noutros tons, noutra terra, noutros tempos.

De repente, Fausto percebeu a quantidade de vermelho que fora acrescentada às bandeiras, antes apenas pretas e brancas. E era, agora, um vermelho puro e lindo, diferente daquele vermelho das torturas. Era um vermelho da cor da vida, da cor do sangue que dá vida, era um vermelho da cor da Esperança.

Era 13 de setembro de 1970 quando um homem que se chamava Maurício, rebatizado Fausto, desembarcou em Curitiba para uma nova vida. Em sua viagem, Maurício não sabia o que iria encontrar em Curitiba. Sabia apenas que era preciso continuar vivendo, atrás de uma certa Esperança que ainda faria deste país um lugar melhor e mais justo.

Era 13 de setembro de 1970 quando um homem que se chamava Maurício desembarcou em Curitiba e começou aqui uma nova vida. Aqui, ele conheceu o vermelho verdadeiro que, ao lado do preto, enche de vida o sagrado pavilhão atleticano.

Em Curitiba, um homem que se chamava Maurício conheceu uma certa menina e teve com ela dois filhos: Vladimir e Clarice, ambos atleticanos apaixonados. Quando Maurício vai ao estádio com os filhos - e hoje eles têm mais de trinta anos - sente uma coisa difícil de explicar. Aliás, sentimentos são coisas difíceis de a gente explicar mesmo.

Nos estádios, nesses anos todos, diante da bandeira Rubro-Negra, o filho Vladimir sempre disse: "Nessa bandeira eu vejo a vida!". A filha Clarice nunca escondeu: "Nessa bandeira eu vejo a vitória!".

Diante da bandeira Rubro-Negra, Maurício sempre diz: "Nessa bandeira eu vi a Esperança!".

Curitiba, abril de 2007: a Esperança é Vermelha e Preta e assim sempre será para aqueles que têm fé!


Este artigo reflete as opiniões do autor, e não dos integrantes do site Furacao.com. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.