Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Alto lá, cara pálida

14/04/2007


Era abril de 1500 quando a esquadra de Cabral chegou a uma terra estranha, habitada por nativos que andavam nus (aliás, andavam, corriam, nadavam, faziam tudo nus - eta tempo bom, saudades!). Pois então. O Cabral chegou lá naquelas bandas com suas caravelas - em cujos mastros tremulavam bandeiras com a cruz de malta - e foi ter com os índios uma conversa que - até onde se sabe - só beneficiou o interlocutor português e acabou num tal Pacto Colonial que dos índios só não tirou as roupas, pois já lhes disse que eles andavam nus.

O português se apossou da nova terra. Determinou que Tupã era coisa do capeta e que deveria ser substituído por Deus. Determinou que Tupi era coisa do capeta e que deveria ser substituído pela última flor do Lácio - inculta e bela. Determinou que a nudez era coisa do capeta e aí veio a tanga, a toga, o terno, o traje e a tradição. Enfim, o português fez e desfez por nossas bandas, tecnicamente até 1822 quando, outro português, também num acesso de mando, resolveu dizer ao pai que dali pra frente quem tocava a filial era ele e que a filial já não pediria a benção à matriz portuguesa. E nesse acesso de fúria, se elegeu Pedro I, mais ou menos como na letra do Samba do Crioulo Doido.

Finalmente, o Brasil estava livre do jugo português e dos grilhões impostos pelo Pacto Colonial que nos custou muito pau brasil, muito ouro, prata, vidas, sangue e outras tantas coisas que a exploração nos leva e que nós nem conseguimos perceber. Após 1822, ficamos livres e - vejam que interessante - só fomos reconhecidos como país livre quando os Estados Unidos resolveram nos reconhecer como tal (eu não sei quanto a vocês, mas eu não gosto dos Estados Unidos e - até hoje - nos filmes de faroeste eu torço pelos índios).

Aí o Brasil ficou livre - e lembrem-se que falo tudo isso em tese, pois a prática nos mostra panorama bem diverso. O Brasil ficou livre e elaborou lá sua Constituição (aliás, a primeira Constituição que tivemos foi fruto de um quebra pau danado).

Depois da primeira Constituição, houve outras e hoje vigora a Carta Magna de 1988 que, em seu artigo primeiro, determina, in verbis:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania.

Dessa redação, inserida na Lei mais importante do nosso país, decorre a singela interpretação de que o Brasil é um país soberano e soberania é a ordenação, não submetida a nenhum organismo, capaz de impor, gerar e fixar competências. Consoante o Prof. José Afonso da Silva, soberania "é o poder supremo consistente na capacidade de autodeterminação". A Soberania é resultante de uma ordem (não submetida a nenhum outro Estado) capaz de transformar um simples território e um conjunto de pessoas numa poderosa máquina que será, ainda, alimentada pela mesma Soberania (que se fará mediante a imposição de competências - os órgão e pessoas a quem o Estado outorgou poderes). A soberania possui caráter interno e externo, ou seja, tem capacidade de fixar competências dentro de seu espaço territorial e determinar essa competência aos outros Estados não permitindo que nenhum outro Estado lhe tome ainda que parcialmente essa capacidade.

Trocando em miúdos: soberania é a capacidade que um país tem de dizer "ninguém manda em mim, exijo respeito, aqui no meu terreiro quem canta de galo sou eu e quem quiser dar ordens que vá procurar outro quintal". É isso (e que me perdoem os constitucionalistas se simplifiquei demais a coisa). O Brasil é um país soberano! - "afirmo e reafirmo", como diria Roberto Jefferson, ex-gordo, ex-deputado e amigo do Collor de Mello, ex-presidente e escroque ainda em plena atividade.

Abril de 2007. Chega ao Brasil uma expedição da FIFA trazendo consigo um tal caderno de exigências para a realização da Copa de 2014 em terras brasileiras. O tal caderno, fazendo jus ao nome, exige do Brasil uma série de ações tendentes a bem receber a Copa do Mundo. Dentre as exigências está a obrigação de o país ter um mínimo de oito estádios com capacidade para 40.000 ou mais espectadores.

Parece fácil, pensarão alguns, mas são oito estádios - no mínimo - dentro de padrões europeus, asiáticos, americanos e aí está boa parte do imbróglio. A FIFA quer estádios, senhores, cujas obras ficam orçadas em 100, 200 milhões de dólares e isso, para os padrões de um país em desenvolvimento como o Brasil, é inviável e chega a soar como um obstáculo proposital imposto pela FIFA (mais ou menos assim: a gente ofereceu, né! Pena que vocês não puderam aproveitar a chance...).

Ora, se a Copa de 2014 vai ser no Brasil, deve ser organizada pelo Brasil e dentro de suas possibilidades reais. Não vejo mal nenhum em organizarmos a Copa 2014 com nossa atual estrutura - ampliada, é claro, por novas obras e por melhorias - mas sem as absurdas exigências da FIFA. Aliás, parece-me que a FIFA pretende encarar o Brasil, candidato a país sede, como se fosse uma Alemanha, cuja economia é pujante, ou como a França, país sede em 1998, dona também de uma estabilidade financeira já de longa data.

Grande erro! O Brasil é o Brasil, com suas carências e suas desigualdades. Ainda não somos uma potência financeira como é a Alemanha, tampouco temos a força da economia asiática, mas merecemos receber a Copa 2014, pois a FIFA tem essa dívida histórica a ser resgatada junto ao povo brasileiro.

O Brasil foi sede da Copa do Mundo em 1950. Está na fila há mais de meio século e, em 2014, serão sessenta e quatro anos sem ver a bola rolar em seus gramados numa Copa. Nesse período, o México, país que guarda grande similaridade com o Brasil, sediou duas Copas do Mundo (1970 e 1986). Por acaso o México dispunha de no mínimo oito estádios, orçados em 100, 200 milhões de dólares na Copa de 70? E na Copa de 86 a estrutura do México por acaso havia sido hipertrofiada para acolher o Mundial? Claro que não, definitivamente, não! E aí cabe a pergunta: o que os mexicanos têm que nós - brasileiros - não temos?

Pode parecer bobagem, mas soberania é fundamental, principalmente para um país emergente como é - ou como quer ser - o Brasil! É a hora de nossos dirigentes deixarem bem claro à FIFA que o Brasil - vencedor de cinco Copas do Mundo, dono do melhor futebol do Mundo, berço dos dois maiores gênios do futebol mundial e numa fila que está quase alcançando seis décadas - tem o direito de sediar o Mundial de 2014 e isso não será favor nenhum da FIFA para nós.

Mais do que isso: é preciso mostrar à FIFA que um Mundial deve se dar dentro das condições econômicas e sociais de sua sede. É preciso mostrar à FIFA que um Mundial deve trazer felicidade ao povo do país sede e não promover nesse povo divisões, sentimentos negativos e revoltas (quem pode dar anuência a investimentos de bilhões de dólares num país que nem sequer erradicou o analfabetismo?). Sejamos razoáveis...

É abril de 2007. Quando as caravelas da FIFA aportarem novamente no Brasil, é preciso que algum nativo - com coragem e com a Constituição debaixo do braço - aborde a comitiva de representantes da Metrópole e brade em alto e bom tom: - Cara pálida, aqui é o Brasil, o país do futebol, e a Copa do Mundo 2014 vai ser realizada aqui, porque nós temos soberania, porque nós temos História, porque nós temos cinco títulos mundiais, e tivemos Garrincha, e temos Pelé, porque somos 200 milhões em ação!

E se os caras pálidas da FIFA não entenderem nossas razões, a gente faz com eles o que os Caetés fizeram com o Bispo Sardinha, em 1562. Afinal, não existe pecado do lado de baixo do Equador!

P.S.: Crianças, não se assustem, mas os Caetés, em 1562, comeram o Bispo Sardinha, desconsiderando o cargo de Bispo e levando em conta somente a condição dele de Sardinha. Uma barbaridade!


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