Rafael Lemos

Rafael Fonseca Lemos, 49 anos, é atleticano. Quando bebê, a primeira palavra que pronunciou foi Atlético, para desapontamento de sua mãe, que, talvez por isso, tenha virado coxa-branca. Advogado e amante da Língua Portuguesa, fez do Atlético sua lei e do atleticanismo sua cartilha. Foi colunista da Furacao.com de 2007 a 2009.

 

 

Eu quero ter um milhão de amigos

04/04/2007


Já deve ter acontecido com vocês. Tem dias que a gente parece uma enorme caixa de recordações. De dentro de nós saltam fatos há muito esquecidos, como se fossem fotos retiradas ao acaso do fundo do álbum que é a nossa memória.

Dia desses, nem sei por que, voltei aos dias da minha infância. Lá, encontrei um menino orgulhoso que, sentado sobre os ombros de seu pai, cruzava nos domingos de manhã toda a Rua XV acreditando ser o dono da cidade. O Centro, vazio, o menino com dois metros de altura e a sensação de ser um super-herói: alto, forte e absoluto. Domingo de manhã era dia de matinada no Cine Groff, era dia de assistir aos filmes do Carlitos, no cineminha apertado da Galeria Schaffer.

No mesmo Centro, o menino ouviu de seu avô, num certo dia de 1980, uma constatação cheia de espanto: "Curitiba já tem oitocentos mil habitantes! Onde essa cidade vai parar?" - e pra cabeça daquele menino de cinco anos oitocentas mil pessoas era uma quantidade inimaginável, de tão grande que parecia ser.

Durante a semana era bom passear com a mãe na Rua das Flores. Na Ébano Pereira havia a parada obrigatória nas Lojas Americanas. A mãe, invariavelmente, ia atrás de algum LP do Roberto Carlos; eu gostava mesmo era de comprar balas a quilo, no térreo da loja. A gente pegava uma cestinha de vime ou de plástico e ia enchendo de balas de todos os tipos: sete-belo, de amendoim, umas de hortelã que cortavam a língua da gente igual gilete, outras que viravam chicletes e aquelas redondinhas de canela.

Depois a gente pesava o conteúdo da cestinha, a moça despejava tudo num plástico transparente e a gente ficava louco pra sair logo da loja pra poder devorar aquelas delícias, mas a mãe sempre brecava: "Primeiro tem que pagar, depois pegar a notinha pra mostrar que pagou e só lá na calçada que pode abrir o pacote". Eu, sempre obediente, aceitava. E íamos pela calçada, ela com um LP novinho do Roberto Carlos, eu com meu saquinho de balas sortidas.

Em casa a mãe botava o disco do Roberto Carlos na radiola e ia fazer uma porção de coisas: almoço, faxina, cuidar do meu irmão mais novo, compras, essas coisas que as mães fazem, ou pelo menos faziam no meu tempo de criança.

No disco tinha uma música de que eu gostava muito. Dizia mais ou menos assim:

"Eu quero apenas olhar os campos, eu quero apenas cantar meu canto
Eu só não quero cantar sozinho, eu quero um coro de passarinhos
Quero levar o meu canto amigo a qualquer amigo que precisar
Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar".

Meu avô tinha dito que Curitiba era uma cidade de oitocentas mil pessoas e ele disse aquilo com tanto espanto que era como se Curitiba fosse explodir de gente a qualquer momento. Quando eu ouvi a expressão "um milhão de amigos", quis saber da minha mãe se um milhão era maior ou menor do que oitocentos mil.

Minha mãe, pacientemente, me explicou que era maior e aí é que minha cabeça de criança deu um verdadeiro nó: um milhão de amigos era mais do que todas as pessoas que havia em Curitiba. Um milhão de pessoas era coisa gigantesca, tão grande que nem cabia na cidade onde eu morava: imagine ter então um milhão de amigos!!! Quem me dera!!! Eu - na época com cinco anos de idade - contabilizava menos de dez amigos e como é que eu ia fazer para chegar ao milhão de amigos, como na música do Roberto Carlos?

Movido pela indignação causada pelos números estratosféricos e pelo desejo de ter também um milhão de amigos, perguntei: "Mãe, um dia eu vou ter um milhão de amigos igual na música do Roberto Carlos?" - e perguntei doido pra ouvir um "sim", pois eu desejava mesmo ter esse montão grande de amigos.

Minha mãe, percebendo nos meus olhos a aflição e a vontade de ouvir resposta afirmativa, me garantiu que sim, que um dia eu ia ter um milhão de amigos. Diante das palavras dela, meu sorriso foi se abrindo e eu fiquei tão contente que me pus a falar e falar, sem fazer pausa, abafando o disco do Roberto que há muito ficara em segundo plano. Eu era todo alegria, pois minha mãe tinha me afiançado: teria, também, um milhão de amigos.

O tempo foi passando. Apaixonei-me pelo Atlético em 1982. Era impossível não se apaixonar. Que timaço: Roberto Costa, Ariovaldo, Jair Gonçalves, Bianchi, Sérgio Moura, Jorge Luís, Detti, Lino, Nivaldo, Capitão, Washington, Assis e Ivair. Campeão do Paraná depois de doze anos. A cidade ficou pintada de vermelho e preto durante muitos dias. Eu - aos sete anos - sentado sobre os ombros do meu pai, cruzava nos domingos de manhã toda a Rua XV, vestido com minha camisa do Atlético, acreditando ser o dono da cidade, com aquela sensação deliciosa de ser um super-herói: alto, forte e absoluto, como se fosse o Assis, como se fosse o Washington.

Tem dias que a gente parece uma enorme caixa de recordações. De dentro de nós saltam fatos há muito esquecidos, como se fossem fotos retiradas ao acaso do fundo do álbum que é a nossa memória. Hoje, estou me sentindo assim: um baú de recordações a se abrir diante dos vossos olhos curiosos, cheio de fatos e de fotos, louco para contar histórias.

E esse cara que hoje faz sua estréia, atleticano, advogado, professor, 31 anos de idade, chamado Rafael Fonseca Lemos - honrado por ser colunista da Furacao.com - de repente pára de escrever e se enche de espanto ao lembrar que, quando menino, perguntara à sua mãe se era possível ter um milhão de amigos e ela respondera que sim.

Pois o tempo passou - já são 25 anos - e hoje eu comprovo que minha mãe tinha razão! Hoje, escrevo para uma Nação de um milhão de torcedores. Hoje, dirijo minhas humildes palavras a um milhão de atleticanos espalhados pelos quatro cantos do mundo. Hoje, estou feliz, verdadeiramente, imensamente!

E se alguém me perguntar sobre as pretensões e objetivos que tenho nesta coluna dedicada ao Clube Atlético Paranaense, hei de responder cantando: "Quero levar o meu canto amigo a qualquer amigo que precisar, eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar".

Hoje, estou feliz, verdadeiramente, imensamente, porque terei um milhão de amigos e todos eles vão ser atleticanos, como eu sou e como você é, prezado leitor. Hoje, e daqui para frente, eu quero tudo. Quero, principalmente, contar histórias e cantar vitórias. Eu só não quero cantar sozinho. Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar o meu amor, o nosso amor, por esse time que é a nossa vida, que é a razão de vivê-la, que é o nosso Clube Atlético Paranaense.


Este artigo reflete as opiniões do autor, e não dos integrantes do site Furacao.com. O site não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.