Vínculo identitário

por José Henrique de Faria
Professor Titular da UFPR. Ex-Reitor da UFPR no período de 1994 a 1998. Presidente dos Conselhos Deliberativo e Consultivo e Membro da Comissão Gestora do Clube Atlético Paranaense no biênio 1995-1996. O texto abaixo é inédito.

No colo de meu Pai, em 1950 fui pela primeira vez à Baixada. Quantas vezes fui depois, não sei, não consigo lembrar e sequer posso imaginar. Foram muitas! Foram todas as possíveis. Todavia, nem preciso recordar desde quando se estabeleceu, ainda que em um nível inconsciente, esta relação identitária entre eu e o Clube Atlético Paranaense, que teima em se tornar cada vez mais forte.

Por perder meu Pai antes de completar cinco anos, voltei ao Joaquim Américo por outras mãos. Primeiro a de Silzeu Pereira Alves, primo de meu Pai. Depois, a de Osley Alves da Silva, meu primo, um zagueiro destes que não mais se vê atualmente: íamos em sua Vespa. Também pulei o velho alambrado de madeira, que ficava atrás dos vestiários, para ver os jogos, pois nem sempre tinha como pagar os ingressos, que afinal nem eram tão caros como os atuais.

Um dia, apareci no estádio para um teste. Goleiro, achei que teria um lugar, uma chance. Pediram uma autorização dos pais. Mas, ao chegar em casa mandaram-me continuar estudando. Durante muito tempo fui assistir os treinos esperando uma mudança da decisão familiar. Que nada! Atrás do gol dos fundos, do gol do “placar”, onde ficava o galpão do famoso pão com bife em dias de jogo, havia uma pequena casa e um grande varal, em que os uniformes dos jogadores tremulavam como bandeiras. Sonhei ver meu uniforme pendurado ali. Nas sociais, dividida em dois segmentos, uma frase marcava: “Uma vez Atlético sempre Atlético”. Fracassada minha tentativa de ser um jogador profissional, fiquei mesmo prisioneiro desta frase, que se não é original, pois se encontra no hino de outro clube rubro-negro, caracteriza meu vínculo identitário.

Quantos jogos! Quantas alegrias, entremeadas de tristezas, pois a vida é feita destas contradições. Descendo a Serra do Mar para ver o Atlético Campeão, em Paranaguá, em uma festa que começou no vestiário, seguiu pela cidade, subiu a serra e me roubou a voz por dois dias. Indo a Mogi, em São Paulo, de ônibus, já como Presidente dos Conselhos Deliberativo e Consultivo, torcendo atrás do gol e comemorando o título da Segunda Divisão e o acesso à primeira linha do futebol brasileiro. Saindo em carreata comemorando a maior de todas as conquistas: Campeão Brasileiro.

Quando este Clube Atlético Paranaense comemora seus 80 anos, não creio que haja espaço para falar das decepções, dos discursos inadequados e prepotentes, das formas como muitas questões são conduzidas e tratadas. Mas não se pode deixar passar esta oportunidade para fazer uma reflexão. As tristezas que merecem registro, ou pelo menos as que mais me marcaram, foram a derrota para um desconhecido clube chamado São Paulo, de Londrina, em que perdemos, mais do que o jogo, nosso inesquecível Presidente Jofre Cabral e Silva e a falta de um gol apenas na vitória sobre o Flamengo em 1983.

Meu envolvimento com o Atlético saiu da arquibancada, dos jogos sem público no Pinheirão ao estádio cheio da Baixada. Em 1994, em meio a uma divisão interna entre grupos de atleticanos, meu nome foi sugerido para presidir os Conselhos, pelo fato de eu não estar comprometido com nenhum destes grupos. Fui eleito, assumindo a Presidência dos Conselhos Deliberativo e Consultivo em janeiro de 1995, e entendi, desde o início, que devíamos tomar uma decisão: ser o ator principal ou continuar sendo coadjuvante. Modernizamos o Estatuto, primeiro passo para viabilizar uma outra forma de gestão. Fizemos um trabalho político para a renovação do Conselho Administrativo. Já tínhamos uma reunião convocada para a instalação de uma Comissão Gestora, cuja finalidade era fazer uma transição entre a forma tradicional de administração e uma nova forma de gerir. Veio a derrota para o rival, os ânimos se exaltaram e a mudança consolidou-se. Não como foi mitificada, com socos na mesa, pois ela já se encontrava em curso, mas com planejamento. Não coordenada a partir de uma pretensiosa indicação externa, mas internamente articulada. O Clube, imediatamente, começou uma nova vida que, apesar de alguns equívocos, resultou em um bem sucedido exemplo. Temos problemas, sem dúvida, alguns deles difíceis, mas hoje o Atlético é referido nacionalmente por seu modelo.

Ao completar 80 anos temos que comemorar e muito. Mas, igualmente, temos que refletir se de fato desejamos seguir aquele projeto iniciado em 1995. O problema hoje é delimitar a esfera de acontecimentos da qual o Atlético pode se tornar responsável. Isto não é fácil porque as ações que se tomam na direção do Clube mostram que as mesmas parecem não estar nas conseqüências como estão de algum modo em seus gestos imediatos. Refletindo sobre o que atualmente ocorre, sobre os rumos e os objetivos, percebe-se, em primeiro lugar, que alguns dos efeitos das ações da direção do Clube destacam-se de algum modo dos seus agentes e são arremessados para uma certa impessoalidade. É deste modo que a ação tem efeitos, podemos dizer, não desejados e mesmo perversos, do desempenho do time ao valor dos ingressos. Em segundo lugar, existe, por outro lado, uma espécie de confusão que torna difícil atribuir à direção em particular uma série determinada de acontecimentos, na medida em que estes se impõem ao Clube (situação social, leis, interesses políticos de outros clubes ou associações, etc.).

Os dirigentes, espera-se, devem saber conciliar as demandas administrativas e as expectativas dos torcedores. É senso comum que o Clube não deixe escapar os resultados pretendidos por um simples motivo de respeitoso otimismo. Desde este ponto de vista, não se pode esperar encontrar uma pura ingenuidade dos indivíduos submetidos totalmente aos encantos míticos ou imaginários da bondade ou a uma coerção direta ou sutil. Mas, que fique claro: ninguém é diferente daquilo em que se converteu.

Deste modo, é relativamente simples observar que se trata, aqui, de enfrentar uma questão bastante complexa, para a qual não há respostas contundentes. O Clube Atlético Paranaense, através de sua direção, se tomar iniciativas que se contraponham aos desejos e interesses de torcedores, dá lugar à controvérsia, à contestação, à rivalidade, em suma, ao conflito das interpretações, no exercício do julgamento prático. As atitudes, as decisões, desta forma, não estão relacionadas apenas à observação, ao aprendizado, mas também ao funcionamento psíquico das pessoas, aos julgamentos, à convicção baseada nas evidências da experiência. Esta é a razão pela qual as atitudes, ainda que paradoxais, não podem ser consideradas como simples resultado de determinações externas, como meras subordinações.

Porisso, é preciso fazer uma distinção entre aquilo que é de reconhecimento subjetivo e o que é digno de conhecimento, de maneira a deixar claro que o assentimento motivado racionalmente associar-se-á a uma aceitação concreta, sendo que essa exigência de consistência significa, ao fim e ao cabo, que cada um, antes de basear seu juízo numa determinada norma, deve examinar se ele pode querer que qualquer outro, que se encontre em uma situação comparável, reclame a mesma norma para seu juízo.

Se as atitudes, no entanto, devem se estruturar para fortalecer ou modificar o conjunto de normas a serem seguidas, isto não significa que as mesmas abriguem tantas razões quanto os sujeitos que as formulam para justificar a si e seus atos. A correspondência entre os interesses do Clube e de seus torcedores só alcança sua plena significação quando o respeito de um tiver se expandido com respeito ao outro e a si mesmo. É necessário, então, que o respeito de si, seja este a direção ou o torcedor, seja igualmente o respeito ao outro e que a estima de si possa estar vinculada à convivência com a estima do outro. Um Clube de futebol não é uma organização mercantil movida pelo lucro, embora necessite financiar suas despesas em uma realidade especulativa. Mas o financiamento de suas atividades não pode se sobrepor aos vínculos identitários com seus torcedores.

Desta forma, o paradoxo entre as atitudes idealizadas e as confessadas, entre o que é sugerido e o que é praticado, entre a democracia defendida e a exercitada, poderia constituir um momento privilegiado para cada um estar diante de si. Como estar diante de si em uma situação como esta gera, pelo menos, desconforto, as pessoas tendem a fugir do confronto, transferindo a responsabilidade de conviver com o paradoxo para um “outro”, omitindo-se de sua parte na relação, fuga esta que lhe impede o próprio desenvolvimento. É possível que, em algum momento da vida, algumas pessoas tenham aderido à convicção de que eles precedem os outros, que a dor dos outros não lhes tocam, não lhes incomodam, não lhes doem. É justamente aqui, onde a estima de si não se submete ao respeito ao outro, que se desenvolve o hedonismo. O que o indivíduo ignora, neste caso, não é apenas que ele sonega ao outro suas condições, mas também que ele mesmo, pela ausência da genuína troca afetiva, reifica-se.

Para desenvolver e garantir sua autenticidade individual cada um precisa igualmente se reconhecer responsável por suas próprias atitudes e assumir as conseqüências de seu fazer, especialmente quando este se contrapõe a interesses de outras pessoas. Quando a pessoa atribui a outro ou a algum fato externo a responsabilidade pelos fatos decorrentes de sua atitude, como que a justificar inclusive para si mesmo seu (não) fazer, seu (não) incômodo, e sua (não) dor, ele ou adota uma postura escapista, ou uma postura de medo e vergonha. De ambos os casos decorre uma desvalorização de si, uma diminuição da estima de si, o que não permite à pessoa compreender que é apenas quando ele se torna capaz de apreciar criticamente suas ações é que ele adquire condições de apreciar, no duplo sentido do termo, a si mesmo como seu autor.

Mas isto não se processa sem dificuldades: a verdade, o erro assumido e o custo pessoal e público pelas conseqüências são garantias do desenvolvimento da estima de si, mas nem por isso deixam de ser dolorosos, na medida em que obrigam a pessoa a se deparar com sua falta, com sua impotência, com o que ele não é e com o que ele é e não aprecia. Daí a grande dificuldade da transformação. Dirigir um Clube, com a importância do Atlético, é expor-se publicamente. É preciso estar preparado para as conseqüências de cada atitude.

A convivência com os paradoxos podem indicar, e certamente indicam, algumas atitudes desviantes ou injustas. Podem igualmente indicar uma certa concepção bastante arraigada, que vem desde a Grécia antiga, segundo a qual a teoria pertencia à "elite" e a prática aos "escravos", concepção esta freqüentemente reafirmada na expressão "na prática a teoria é outra", a qual justifica muitas atitudes. Entretanto, a maneira de ser das pessoas e suas dificuldades para lidar com o que lhe provoca dor muitas vezes permite desencadear uma dinâmica que possibilita a tais pessoas acreditar que o que é pensado é aquilo que de fato é, que a simples compreensão é suficiente para desencadear mudanças de atitude e que a intenção supõe o gesto. A realidade não é assim. Para mudar, é preciso incorporar o projeto em sua totalidade, com a razão e com a emoção.

O Clube Atlético Paranaense pertence a todos os que mantêm com o clube um vínculo identitário, todos os que por ele alimentam uma paixão incondicional. Estas pessoas, que comemoram, em 2004, 80 anos de existência de uma das mais importantes escolhas em sua história de vida, que é ser atleticano, esperam que, considerando as dificuldades conhecidas, sejam tratados, para sempre, como as mais importantes pessoas deste mesmo Clube. Não é muito, para quem aplica no Clube Atlético Paranaense, o mais precioso de todos os investimentos: seu afeto. O presente dos 80 anos, assim, não é a Baixada concluída ou qualquer outra oferenda material, ainda que estas sejam importantes, mas a garantia de que todos os atleticanos possam continuar a ser torcedores vibrantes a apaixonados em sua própria casa.


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